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Full text of "Portuguezes e inglezes em Africa ; romance scientifico"

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GENS PORTUGUEZAS 1 


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EM AFRICA 

ROMANCE EClENTÍFICO 
A, E. VICTORIA PEREÍR.1 




LISBOA 
JOÃO ROMANO T0KBE8 - EDITÍJR 



109, Rds da Bmocs, 




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RTIJGIIEZES E IIGLEZES EM MU 



VIAGENS PORTUGUEZAS 



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ROMANCE SCIEHTIFIGO 



A. E. VICTORIA PEREIRA 




LISBOA 

JOÃO ROMANO TORRES — EDITOR 

109, Rua da Barroca, 109 



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A MEU FILHO 



JOSÉ ESTEVÃO 



Alumno do JReal Collegio Militar 



Vaes entrar na vida em occasião bem dolorosa^ quando 
a pátria exangue e moribunda luneta nos arrancos epilépticos 
e desesperados dos que foram fortes^ e se encontram con^oi- 
dos pelo micróbio devorador da tisica^ nos últimos lampejos 
da alma que se esvae. 

Se podesse mudar o curso ao tempo ^ nao eras tuj meu fi- 
lho^ que receberias este legado funesto e pesado^ qus a mo- 
cidade d'hoje tem a administrar n'um futuro cheio d^encar^ 
gos graves e onerosos, que só o seu sangue vivido e benéfico 
poderá remir. 

Quando leres as paginas que se seguem, e vires n'ellas 
derramado o veneno que nos deforma a existência, e o ódio 
que temos a esses filhos do norte, a esses flibusteiros queptd" 
lulam d*uma ilha, como as térmites terriveis dos seus cones 
d^argila, para atacar os fracos, os dormentes e os descui- 



dados j lembra-tCj que este livro foi escnpto em 1891, quan- 
do a terra que nos foi berço se agitava num frémito de in- 
dignado e cholera, sob o influxo dos nefastos tratados, que 
a Inglaterra nos impoz, depois de esbofetear as nossas faces 
com o aultimatum^ de 11 de janeiro de 1890! 

Se o futuro que te é legado e aos teus companheiros es- 
cholares, for ainda cheio de maiores amarguras do que 
aqu^llas que ha mais d'um anno estamos soffrendo, não tor- 
nem só a culpa aos inglezes, recordem também que dos eirros 
accumulados dos nossos governantes nasceu a doença fatal 
que nos mata, e que deveis a todo o custo debdlar. 

E, se houver a lucta heróica dos opprimidos contra os 
fortes, lembra-te, meu filho, que se não te for ainda confiada 
uma espada, não te negarão, por certo, uma carabina para 
o combate, aonde vencerás ou cahirás de frente, abraçado 
á bandeira da pátria, 

30 de abril de 1892. 



Teu amigo 



A. E. ViCTOBiA Pereira. 



PORTDGDEZES E INGLEZES EH AFRICA 



PRIMEIRA PARTE 



MAGELINA A FILHA DE GONJI 



EH PRETÓRIA 

O relógio da casa de jantar de Sir MacLeod estava a 
terminar a nona martellada na sua sonora campainha, 
quando trez portas se abriram ao mçsmo tempo, sahindo 
por ellas Drew e Edward Buckle, engenheiros de minas, 
e Sir Mac-Leod, todos inglezes de puro sangue. 

A pontualidade britânica não podia ser d'e9ta vez posta 
em duvida, como o não é nunca, e a etiqueta de gentle- 
mens, menos ainda. 

Estavam estes três personagens rigorosamente vestidos 
para jantar, como se se encontrassem n'algum dos explen- 
didos palácios de Portland-place, Regent-Street, Burlington, 
Grosvenor-square, nos de Lord Buckingham, na sala dos 
festins de Jacques 1.° em White-Hall, ou no próprio cas- 
tello de Windsor, sendo commensaes da mais alta aristo- 
cracia do dinheiro e do sangue. 

Sem proferirem palavra, cortejando -se com um leve mo- 
vimento de cabeça, em que os hombros e o tronco cousa 



8 PORTUGUEZES E INGLEZES 

alguma perderam da sua quadratura e prumada, estende- 
ram ao mesmo tempo> a mão direita, com uma uniformi- 
dade de movimento d'automatos, puxando para si uma ca- 
deira^ cada um se assentou á meza do jantar. 

Trez creados, de casaoa e gravata branca, emper- 
tigados e direitos, como bons servos inglezes, entra- 
ram ao mesmo tempo, servindo os commensaes ao modo 
russo. 

Constava aquelle jantar, verdadeiramente inglez de: um 
salmão de mais de metro, com um molho especial, cujo 
sabor se assemelhava' ao que teria um fogo d'artificio que 
se engulisse depois de estar a arder , como diz Mr. Francis 
Wey ; seguia-se-Ihe uns pratos de caça muito cosida, bas 
tantes peixes e ^assados. Na segunda coberta, entre innu- 
meras iguarias singulares, nâo faltava o celebre bolo il- 
lustrado com hervas agres, e sallada temperada apenas 
eom sal. 

Havia pelo menos uma hora que os trez comiam e be- 
biam sem trocar palavra. 

O jantar de Sir Mac-Leod era um banquete, e a fras- 
queira estava fornecida de Porto, Madeira, Xerez, Málaga 
e Champagne, para todos os lords e engenheiros do Reino 
Unido que se lembrassem da excentricidade d'ir espalhar 
o seu spleen pela Africa, e especialmente por Pretória, 
onde Sir Mac-Leod estava. 

Outros, que nâo fossem estes inglezes, já ha muito esta- 
riam a dormir debaixo da meza, porém^ Sir Mac-Leod, 
Drew e Edward Buckle, conservavam a mesma impertur- 
babilidade do principio do jantar ; somente o seu olhar era 
mais vivo e a cor amarella debatida da3 suas £aoes tinha 
um tom roxo-terra, que as muitas hi^es do lustre punha 
bem em evidencia. 



EM AFRICA 

Sir Mac-Leod levantou então o seu copo cheio de lim- 
pido Madeira e disse : 

^^ Genãemem, pela prosperidade da Inglaterra. 

Hurrahs repetidos responderam a este brinde. 

Estava acabado o silencio ; a conversação tornou-se ge- 
ral e 08 brindes succederam-se. 

Edward Backle levantou-se e disse : 

— Mylord, Sua Magestade a Rainha é a imperatriz das 
índias ; a bandeira ingleza ftuctua em Gibraltar, Malta, 
Qt>zzo, IndustSo, Ceylão, Aden, Hong-Kong, Labuan, Pe- 
rim, Nova Galles do Sul, Tasmania, Austrália occidental 
e meridional, Victoria, Nova Zelândia, Queenslandia, La- 
vrador, Baixo e alto Canadá, Acadia, Novo Brunwick, 
Cabo BretSo, Ilha do Príncipe Eduardo, Terra Nova, Co- 
lômbia, Ilha Vanconver, Stickeen, Antigoa, Barbados, Do- 
minica, Grenada, Jamaica, Montserrate, Nevis, S. Chris- 
tovam. Santa Lúcia, S, Vicente, Tabago, Ilha das Vir- 
gens, Anguilia, Trindade, 'Guyana, Turk^s Islands, Baha- 
ma, Bermudas, Bdiize, Ilhas Falkland, Gambia, Santa 
Helena, Costa do Ouro, Serra Leoa, Cabo da Boa Es- 
perança, Ilha Mauricia, Natal, Costa da Guiné, e dentro 
em pouco em toda essa Africa, que os portuguezes di- 
zem sua. 

As ricas minas d'ouro, de prata e de diamantes que 
este solo abençoado encerra escondido, havemos de pos- 
suil-as, e, a todos os títulos de Sua Graciosa Magestade, 
juntar-se-ha o de Imperatriz da Africa. 

Bebamos pois pelas prosperidades da Inglaterra. 

Os hurrahs foram tão estrepitosamente repetidos, que 
quem passasse, diria estarem ali dezenas de pessoas. 

Estes fres honrados ingleaes já iam perdendo um pouco 
a linha. 



10 PORTUGUEZES E INGLEZES 

Já não eram os frios e aprumados sujeitos do princípio 
do jantar ; eram a intemperança personificada, e quem não 
estivesse habituado a estes costumes da maioria dos lords, 
extranharia tal incontinência, mas quem tiver visto os qua- 
dros doesse famoso Hogarth, que admiravelmente pintou 
os costumes dos seus conterrâneos, e quem ler os obras 
primas de Byron, não se admira cousa alguma doesta scé- 
na e das que se vâo passar. 

Os creados, segundo as ordens que tinham, retiraram- 

se para dar entrada a três formosas pretinhas que vinham 

, servir a sobremeza, composta de enormes pães de Ches- 

ter e de Stilton, com manteiga fresca, e diversas fructas 

dos paizes mais longiquos. 

O seu vestuário constava apenas d'uma tanga de fran- 
jas d'ouro, manilhas no pé direito e nos braços; nas 
orelhas brincos de coral com forma de pingente, e no pes- 
coço grossas contas de pérolas I 

Eram três formosas raparigas, d'aquellas que das cerca> 
nias de Pretória ali vêem vender capata. 

De formas esbeltas, olhos grandes e scintillantes, tinham 
por isso sido escolhidas pelo mordomo de Sir Mac Leod 
para servirem milord e os seus hospedes e divertil-os de- 
pois do jantar. 

Ás pretas accederam de boa vontade, quanto mais, que 
o mordomo não regateara os seus serviços, e os pães d 'ci- 
las receberam bem bons presentes, capazes até de fazer 
calar o mais escrupuloso, se ali os .houvesse. 

As pretas entraram alegres e prasenteiras com as salvas 
de prata na mão, contendo esquisitas fructas. 

Sir Mac-Leod e os seus hospedes, ao mesmo tempo que 
saboreavam tão apetitosos pomos, iam suavemente sentan- 
do no coUo as encantadoras serviçaes. 



EM AFRICA 11 

O que entSo se seguiu, adivinhe-o quem quizer^ só di- 
rei què, as carioias de amor foram tâo prodigalisadas par 
estas VenuB d^ebano^ oomo o seriam pela mais formosa 
huri do oriente, e o ehampagne transbordou das taças, 
dos lábios doestas deidades pretas, e dos estômagos doestes 
gentlemens borrachos. 

Eram duas horas da manhã quando os creados, que. ti- 
nham na cosinha imitado os patrões na gula, entraram 
cambaleando e foram despir e mettiir na cama os seus ex- 
cellentes amos, que ha muito tinham principiado o somno 
debaixo da meza, commodamente estendidos no tapete ao 
lado das formosas amantes, que, como elles, não deram 
por ser transportadas para a sua alcova. 

Depois de terem cumprido conscienciosamente o seu de- 
ver de bons, servos, tinham o direito de gosar como lords, 
e estes âerios Johns sentaram- se satisfeitos nas cadeiras 
dos patrões e discutindo a grandeza da opulenta Inglater- 
ra, conforme a sua lingua lun tanto atrapalhada lh'o per- 
mittia, foram dentro em pouco repousar no chão, abraça- 
dos ás cadeiras, das fadigas do combate com tão temiveis 
inimigos oomo são. o Porto e o Madeira. 

Eram aquelles fíeís filhos da Gran-Bretanha, creados 
particulares dos fundadores d'uma companhia que se pro- 
punha explorar o ouro dos domínios portuguezes de So- 
fala, Manica, Zumbo, e especialmente as importantes 
minas de Sabagué, situadas entre os rios Sabaqué e 
Bembese, cortadas pelo parallelo 19.^, nas terras de Ma- 
chona, no paiz dos Matebeles, antigo império do Mono- 
' mo tapa ! 

Sir Mac-Leod, o director em chefe, orçava pelos 40 an- 
nos} alto, espaduado e hirto, não andava como qualquer 
de nós: avsmçava em passo gymnastico, ceHo, cadencia- 



12 PORTUGUEZES E IÇÍGLEZES 

do e rápido, quasi sem dobrar as pernas. Tinha tanto do 
andar do lobo, quanto na sua alma havia o instinto do cha- 
cal e no seu coração o aentir da ave de rapina. 

Caminhava para a frente sem se importar com os obs- 
táculos; acotovelava, pisava, esmagava os fracos e os des- 
prevenidos que encontrava no caminho, sem compaixão, 
sem dó e sem remorso pelos seus lamentos, pelas suas 
queixas e pelas suas dores. 

Estava sempre em sua casa, em toda a parte ; para elle 
não havia consideração de espécie alguma com as pessoas 
por quem passava. 

Tudo que não fosse inglez, que não fosse a sua Gracio- 
sa Rainha, não tinha valor. 

O mundo era todo inglez, e se o não era, havia de o ser, 

Sir Mac-Lejd assim o entendia. 

E em nome doeste principio, tratava os paizes estran- 
geiros como terra conquistada. 

As suissas de Sir Mac-Leod é que o trahiam : por mais 
que se empertigasse, se impozesse e ordenasse, aquellas 
suissas ruivas e pouco povoadas de cabello, eram o tra- 
ço que o havia de ligar eternamente á sua primitiva ori- 
gem. 

£ram as suissas do genuino baixo tendeiro, do flibustei- 
ro do passado, do presente e^ do futuro.. 

E os olhos ? 

Se não diziam um poema de feitos heróicos, sublimes e 
bellos, fallavam na sua expressão esverdeada e baça, a 
linguagem dos pântanos lodosos, miasmaticos e mortí- 
feros ! 

Nas veias de Sir Mac-Leod corria o sangue d'aquelle 
perverso Mac-Leod que no Canadá, em 20 de dezembro 
de 1837, debaixo das ordens do tenente da milicia real 



EM AFRICA 13 

Drew, assasau^ou cobardemente os foragidos da liba Navy, 
que depois diurna ultima e desesperada resistência pela 
independência e autonomia da sua colónia, tinham ido, di- 
zimados pelos canhões das baterias de Chippeyrek e pela 
fusilaria dos Reaes de Mac-Nab, procurar protecção a bor- 
do do Cai*olina, pequeno vapor americano. 

Estes desgraçados não podendo pernoitar na aldeia ame- 
ricana de Schlosser, por já nslo haver ali habitações dis- 
poniveis, esperavam fundeados no Carolina que amanhe- 
cesse, para se internarem, fiados no direito c2a« gentes e 
na protecçito da bandeira dos Estados -Unidos, foram por 
horas mortas da noute surprehendidos pelos carniceiros 
inglezes, assassinados vil e cobardemente; e, estes sicá- 
rios, não contentes eom tamanhas atrocidades, incendiaram 
o navio, cortaram-lhe as amarras ; e o Carolina, impellido 
pela rápida corrente do Niagara, correu vertiginosamente 
para o precipicio das cataractas ! ! 

D^ahi a pouco os lamentos dos moribundos e os gritos 
estridentes dos feridos foram- se misturar com o bramir 
rouco e medonho d'aquella immensa massa d'agua, que os 
precipitou no abjsmo ! ! 

D'aquellés heróicos descendentes de Jacques Cartier, 
d'aquelles bonnés azues, que em S. Bento, S. Eustacio, S. 
Carlos, S. Diniz, Quebec, Montreal, Manitoba e Ottawa, 
conjunctamente com Nelson, Papineau, Filippe Pacaud, 
Vandreuil, Hodge, André Farran, Willian Clerc, Sebas- 
tião Gramont, Brown, Desvieres, Gauvain Amiot, Mar- 
chessault, Maynant, Thomaz Harcher, Chemier, Lorimier 
e Ferreol, combateram com o delirio do heroísmo e com 
o desespero dos loucos, em 1825, 1832, 1835 e 1837, pela 
integridade da pátria, já não restava senão a lembrança 
d'elles no coração dos seus^ e o ódio eterno de todo o 



y,- 



14 P0RTUGUEZE8 E INGLEZES 

mando aos inglesesi pela aoç&o barbara, infame igúobil, 
baixa, deshamana e vil, d'aqaelle cannibal Mac-Leod. 

Drew tinha 30 annos. 

Edward Buckle 36. 

Como o seu associado e chefe, eram inglezes ! 

Escusado será d'eUes dizer, por ora, mais cousa alguma. 

Dize-me com quem lidas 

e este annexim 

nunca teve melhor applicaçSo. 

Eram estes honrados genúemens negociantes e negreiros 
que estavam em Pretória organisaudo com elementos in- 
glezes, acclimados iquellas regiSes, uma expedição, que 
d'ali mesmo partiria directamente para a Machona, pelo 
caminho mais curto. 

Pretória, essa florescente cidade, que em 188 . , . época 
em que principia a nossa historia, era finalmente a capital 
do Transvaal, reconhecido pela convenção de 1883 como 
republica indepeudente da Africa Austral, depois de tan- 
tos esforços dos boers para se verem livres do dominio in- 
glez. 

E eram dignos de liberdade aquelles que, depois da re- 
vogação do Edito de Nantes, qnizeram fundar uma pátria 
no sul da Africa, onde socegadamente dis&uctassem as ga- 
rantias sociaes que a Europa lhes regateava. 

Eram merecedores da liberdade aquelles francezes e hol- 
landezes que tão altiva e- nobremente resistiram em 1795 
a Clark e ao almirante Elphinstone, que se apossou do 
Cabo em nome da Inglaterra ! I E que só se submetteram 
pela força ao dominio inglez em 1806, quando aquella na- 
ção, desprezando a convenção d'Amiens, se lhes impoz bru- 
al e perfidamente. 



EM AFRICA 15 

Eram credores da liberdade aqaelles homens altivos^ 
heróicos e trabalhadores, qM, para fugirem ao dominio 
bárbaro e vexatório dos ingleses, successivamente emi- 
gravam para o "interior da Africa, para os sertSes desconhe- 
cidos, conquistando aos Cafres, aos Zutos, aòs Basutos e 
aos Gricuas, palmo a palmo, a terra aonde iam fomentan- 
do a civilisaçfto e o progresso. 

E, quanto mais arroteavam, desbravavam e conquista- 
vam, mais os inglezes bc iam internando atrais d'elles e 
tomando conta, em nome da Rainha, das suas terras, dos 
seus haveres e das suas pessoas ! ! 

Mereciam a liberdade, aquelles que á custa do seu san- 
gue nobre e valentemente derramado nos combates com 
Muzilicatezi, rei dos Matebeles, Dingam, chefe cafre, e 
outros poderosos «hefes indigenas, fundaram as cidades de 
Piétermaritzburg, Potcbefstroom, Lidenburg, Zoutpans- 
berg e Pretória ! 

Eram dignos de se governarem a si próprios aquelles 
que tanta vez foram victimas da deslealdade, da cubica e 
da perfidia dos inglezes, que tão depressa assignavam o 
tratado de Sand River de 1852, reconhecendo a autono- 
mia dos, boers, como logo, em 1^ de abril de 1877, pela 
voz de Bir Theophilus Shepstone, com uma sem cerimo- 
nia que faz pasmar, lhes faziam saber que o Transvaal, 
com todas as stuis mmas de ouro e de diamantes, era uma 
provinda ingleza ! ! ! 

]^ conquistaram direito de ser uma nação livre, aquelles 
que tiveram por chefes Pieter Retief, Gert Maritz, Adriano 
Pretorius e Francisco Burgers ; aquelles que em tao curto 
espaço de tempo tinham já uma historia cheia de marty- 
rios, de heroísmos e de soffrimentos, luctando contra o po- 
der da poderosa Inglaterra, contra o clima, contra a im- 



16 P0RTUGUEZE8 E INGLEZES 

mensidade do eerlSo desooaheeido, contra os Cafres, os 
Zulos 6 08 Baautos,. confiando na fé dos tratados com os 
inglezes e ludibriados centos de vezes, até á convenção de 
3 de agosto de 1881, em que 'finalmente se viram livres 
d'um jugo tSo odioso & insupportavel ! 1 

Pretória foi pois bem escolhida por Sir Mac-Leod para 
organisar a expedição com tudo de que careciam os ex- 
ploradores d'aquelle género, porque Wi havia homens, ar- 
rojados, soldados e mineiros^i e todo o material necessário 
para a tra^vessia da» terra doi9 Matebeles e para o estabele- 
cimento na Bechuana e no Machona^ 



n 



ORGANISAÇiO Bi EXPEDIÇiO POIlTDfiOBZi k COMI NO MCiHONi 

Os succesBOs que o intrépido explorador Arthur de Ma- 
galhães * teve na África occidental, eohoaram d'am extre- 
mo ao outro do mando. 

Portugal parecia ter voltado aos tempos felizes e áureos 
das descobertas marítimas do século XV, e do opulento 
commercio oriental do reinado de D. Manuel e dos mo- 
narchas da primeira metade do seeulo XVI. 

A corrente da opinilLo publica e»tabelecia-se na direcção 
dos nossos vastos e.abaodciDado9dominioa. africanos. 

Os jornaes e os escriptores de pezo dedicavam oolum- 
nas e paginas a mostrar aos incrédulos as riquezas mino- 
rias que aquelles novos Eldorados encerravam. 

O indiffsrentismo indígena despertava por fim, e todos 
esperavam com anoiedade a chegada do vapor Malange, 
que conduzia a seu bordo um dos mais intrépidos e deste- 
midioB exploradoresi jQ major Sotto Maior, que acabava de 

> Viáè-^Uma eooploração africana — A Nova Lishoai 



18 PORTUGUEZES E INGLEZES 

percorrer o valle do Zambeze, e este rio até á sua confluên- 
cia com o Sanhate, subindo-o com grandes difficuldades, e 
só parando em Baniaes, onde passou para o Umniati, que 
explorou até ás suas nascentes nos Montes Cigarra e Ma- 
chona, organisando a verdadeira hydrographia doestas zo- 
nas, atravessando o Save no parallelo 19.^, visitando o 
celebre Mutassa, que lhe assegurou a sua fidelidade a Por- 
tugal, descançando no forte portuguez de Massi-Kesse, 
atravessando o Muse, affluente do Revue, descendo o Pun- 
gue desde a sua confluência oom o Mussania, e embarcan- 
do na Beira para Lisboa, aonde vinha expressamente para 
organisar uma expedição mineira nas terras de Manica e 
MachoBi^ e f^çier vaat^'o8ii9 propostag ad governo. 

O sábio e pratico major elaborara um succínto e conci- 
so relatório dit sua viagem, e acompanhara-o de amostras 
do mais poro diamante e do excellente ouro encontrado 
no districto de Manica e no paiz de Machona, antigo im- 
pério de Monomotapá, piura convencer aquelles que fossem 
bem teimosos e iocredulos. 

rorèm doesta vez, caao raro enire nós, a politica ainda 
se não tinha mettido no easo, e por isso o povinho pen- 
sando, conú) devia pensar, e fazendo justiça merecida ao 
intre^db e arrojado major^ pr^Murava*lhe uma ruidosa ma- 
nifestação á sua chegada. 

A sociedade de geographia era a primeira a disputar a 
honra de receber o major, honra que facilmente lhe foi 
concedida, attendendo aos altos e relevantes serviços que 
a sociedade tem prestado ao paiz em tudo que se relacio- 
na com as nossas cousas ultramarinas. 
, Era deslumbrante o aspecto do formoso Tejo na manhã 
do dia 24 de julho de 188... As aguas límpidas e pratea- 
das estavam cobertas de baròos de todos os tamanhos e 



EM AFRICA 19 

feitios^ desde a elegante guíga do Real Club até ao barco 
catraio, e desde o vaporsinho esguio, delgado e airoso, 
movido por poderosa hélice, até ao rotundo vapor de.ro-, 
das da carreira de Cacilhas. 

Parecia dia de gala : os navios de guerra e os mercan- 
tes, e toda a esquadrilha de barcos que navegavam em 
diversas direcções,. tinham embandeirado em arco, com os 
mais vistosos galhardetes. 

Os marinheiros da pittoresca e variada flotilha, que ia 
esperar o major, também quizeram realçar aquelle acto, 
vestindo os seus fsitos domingueiros. 

Os barcos apresentavam um deslumbrante panorama nas 
variegadas cores dos vestidos das damas da nossa primei- 
ra sociedade, e das formosas e boas filhas do poVo, que 
também quizeram com a sua presença mostrar a conta em 
que tinham os horoes do continente negro, e que dentro 
d^aquelles peitos fortes e vigorosos batia um bom e leal 
coração portuguez. 

A's 10 e um quarto a torre de S. Julião da Barra fez 
o signal de estar á vista o Malange. 

O Tejo era estreito para a quantidade de barcos, que a 
toda a força de remos e de vapor navegavam para a bar- 
ra, ao saber esta feliz noticia. 

Meia hora depois viam- se distinctamente os passageiros 
do Malange^ e o major Sotto Maior destacava-se bem en- 
tre a multidão que entolhava a tolda, pelo seu uniforme e 
elevada estatura. 

A's 11 e meia estava o Malange dentro da barra, e a 
visita de saúde, indo a bordo verificar, as cartas, dava- 
Ihe livre passagem. 

D'ali até ao ancoradouro, defronte do Arsenal da Mari- 
nha, foi uma viagem triumpl^di que recordava a chegada 



20 PORTUGUEZES E INGLEZES 

dos navegadores do século XV e XVI^ que descobriram 
os paízes, que são hoje a nossa gloria e o nosso pesadelo. 

As musicas, alegres e pptentes, enchiam o espaço ethe- 
reo com as suas notas harmoniosas. 

Estrondosos e unisonos vivas áportugueza saudavam o 
major na sua passagem. 

Finalmente o heroe d*aque!le dia desceu a escada do 
portaló e embarcou no escaler, que do acsenal o tinha ido 
buscar, e em poucas remadas chegou a terra. 

Ali o delírio dos seus admiradores foi enorme, e subiu 
a tal ponto, que tiraram os cavallos ao carro que devia 
transportar o major ao Hotel Braganza, e á força disputa- 
ram a honra de conduzir tâo benemérito cidadão. 

No hotel, o major três vezes teve que chegar ás janel- 
ias e fallar nas suas viagens, nos paizes do ouro, dos dia- 
mantes e no brilhante futuro que estava reservado a Por- 
tugal, quando o povo, essa alavanca poderosa, o ajudasse 
uo seu emprehendimento. 

A multidão a custo se convenceu de que o seu heroe 
lambem era homem ; que o ser humano necessita de refa- 
zer as suas forças para poder continuar nos trabalhos da 
vida, e que o major Sotto Maior tinha feito uma viagem 
de três annos atravez de regiões faltas de todos os recur- 
sos dos paizes civilisados. 

A' multidão succedia a multidão ávida de vêr e admi- 
rar aquelle que na Africa oriental ia realisar trabalhos 
hercúleos, que fariam renascer o nosso passado e ultra- 
passar 08 tempos em que os pecados galeões e as carrega- 
das naus das índias transportavam as riquezas fabulosas, 
de que, infelizmente, nos não soubemos aproveitar. 

Alguns momentos bastaram ao major para mudar de 
fato, lanchar, e estar prompto a sahir e procurar o mi* 



EM AFRICA 21 

nistro da marinha, apresentar-Ihe os seus respeitos e o 
relatório. 

O major bem tinha visto pelos seus próprios olhos quê 
era urgentissimo organisar expedições; avassallar os ré- 
gulos yisinhos, reduzir á obediência os que, moradores 
nos prazos da coroa, estavam em completa rebeldia ha- 
via annos, construir em diversos pontos fortes bem ar- 
tilhados, e tornar effica^ e permanente a occupaçâo afri- 
cana, a não querermos que os bons dos nossos amigos e 
fieis aUiados, invadissem e se assenhoreassem, com a má- 
xima sem-ceremonia do mundo, de todos os nossos antigos 
domínios d'além-mar, e accrescentaodo um simples land 
á terminação dos nomes das povoações portaguezes, ellas, 
por esta commoda e barata conquiata, fossem engrinaldar 
a coroa de Sua Graciosa Magestade com mais um Duca- 
do, um Reino, ou um Império ! ! • 

As propostas do major eram todas acceitaveis, e, se o 
ministro as não approvou logo, foi porque desejou, em 
caso tão importante, ouvir os seus coUegas. 

Âs propostas eram pouco mais ou menos estas : 

O governo consentiria na organisaçao d'uma companhia 
civilisadora e mineira, que se estabeleceria no Machona 
próximo do rio Sabagué, tendo como limites da sua área 
d'acçâo, ao sul o parallelo 22.^, ao norte o 17.^, a leste o 
33.° de longitude E de Greenwich e a este os territórios 
avassallados e os que podesse avassallar, resalvando os di- 
reitos adquiridos por outras companhias. 

 companhia teria todas as garantias e foros que teem 

do governo inglez as companhias Forbes Reef Gold Mini- 

ry Co, Ls, Swasiland African Gold Estates Co, Pigg*s 

Peak Estate and- Gold Miniry Co, Wylds dale Gold Ex- 

ploraiton and Developing Co, as celebres companhias dos 

2 



22 PORTUGUEZES E INGLEZES 



Lakes, South Africain Companj, e outras. A companhia 
seria denominada Companhia Mineira e Civilisadora do 
Machona. 

O governo garantiria o juro de 5 \ ao capital de qua- 
tro mil contos, que a companhia levantaria em Por- 
tugal. 

O governo consentiria na organisaçâo d^um regimento 
de policia, composto de dois mil homens, e facilitaria os 
melhores officiaes para o commandar. 

O governo forneceria armas dos últimos modelos para 
os expedicionários, peças de artilheria, metralhadoras e 
mais petrechos de guerra necessários á segurança indivi- 
dual dos colonos. 

Por sua parte a sociedade obrigava-se a : 

Dar por anno ao governo 10 \ do producto liquido dos 
seus rendimentos. 

A levantar aldeias, villas e cidades em diversos pontos 
do terreno concedido. 

A construir vias rápidas de communicação com a costa, 
á proporção que fosse realisando capitães. 

A avassallar e reduzir á obediência os régulos lemitro- 
phes e dentro da sua área d^acção. 

A reprimir, por todos os meios ao seu alcance, o trafi- 
co da escravatura. 

A empregar somente operários portuguezes, etc. 

No dia seguinte ao da chegada do Malnnge^ EI-Rei ti- 
nha-se dignado receber o major, dando-lhe assim uma 
prova inequivoca do alto apreço em que 1;inha os seus ser- 
viços, e para mais lh'o testemunhar, tirou do peito da sua 
farda d'almirante, que tinha vestida, a commenda da Torre 
Espada do Valor Lealdade e Mérito, e coUocou-a por sua 
mão no peito do bravo, que tantos serviços prestara e ia 



EM AFRICA 23 

prestar á pátria, acompanhando El-Rei esta merecida re- 
compensa com palavras do mais subido louvor. 

O ministério, depois de larga conferencia, acceitou to- 
das as propostas do major, accrescentando-lhe algumas 
ainda, tendentes a beneficiar a sociedade. 

Em Lisboa e nas provincias nâo se fallava n'outra cou- 
sa, e aquelles que, pelo receio ou negligencia não tinham 
corrido ao convite do dr. Arthur de Magalhães, ^ quando 
este sábio explorador descobriu as minas do Cubango na 
na Africa occidental, eram agora os primeiros a alistarem- 
se nas bandeiras do bravo major. 

O empréstimo de quatro mil cantos foi três vezes co- 
berto ! 

Os argentarios portuguezes tinham finalmente aberto as 
suas hurroà e escancarado os seus cofres aos emprehendi- 
mentos africanos, e a agiotagem soez, tacanha e pequena 
foi posta de parte. 

O major era incansável na organisaçâo da expedição, e 
n'um mez estava prompto a partir, tendo por companhei- 
ros : o engenheiro Pedro Costa, os conductores d'obras pu- 
blicas João Chagas, Manoel Curado, Raul Montenegro e 
Paulo d'Avellar, o dr. António de Lima, os capitães do 
exercito Alfredo de Magalhães, Alfredo Estrella, Francis- 
co do Villar, o tenente Alfredo de Sousa e mais oito alferes. 

Dos homens que comporiam a policia da companhia, 
somente quinhentos seriam europeus; os restantes recrutar- 
se-hiam nos indigeoas africanos. 

Uns duzentos operários, com suas familias, estavam 
também promptos a partir. 

O major teve que fazer uma rigorosa escolha entre os 

* Vide — Nova Lisboa. 



24 PORTUGUEZES E INGLEZES 

offerecidos, por nào poder a expedição constar de tanta 
gente, fícando por isso composta dos homens mais rqbus- 
tos, honra^dos e honestos, e dos artistas mais hábeis. 

Cousa alguma faltava ao grande material que fazia parte 
da expedição, e os diversos ramos de serviço estavam di- 
vididos em secções, com os respectivos chefes e pessoal 
correspondente. 

Havia barracas de tecidos levissimos e impermiaveis, 
barcos d'armar e desarmar, pontes do systema mais aper- 
feiçoado, instrumentos de precisão e agricolas, armas de 
guerra e de caça, munições em abundância, fato e calçado 
de sobresalente, trens d'ambulancia, cosínhas e fornos por- 
táteis, trens telegraphicos, estufas de desinfecção, appare- 
lhos eléctricos adequados a diversos misteres, e objectos 
para permutas e presentes durante a travessia da Beira 
(Bangue) ás terras de Machona, onde a expedição ia ini- 
ciar os seus trabalhos. 

O major, antes de partir, fez uma brilhante conferen- 
cia na Sociedade de Geographia, em que mostrou á evi- 
dencia, que o território de Machona, Manica, Zumbo e parte 
do paiz dos Matebeles nos pertencia ha muito, tendo nós 
tido já n^aquellas paragens dominio effectivo desde o pa- 
rallelo 23.® sul, que corta o rio Bembe ou dos Crocodillos, 
até ao Zambeze, como ainda hoje se vê pelas ruinas dos 
fortes, ermidas e feitorias portuguezas na confluência do 
Losani com o Bembe^ em Tati, Charlei, Montes Doro, In- 
telete, Quitamburaise, Imbila e outros. Entre muitos do- 
cumentos leu uma escriptura transcripta da década 13 de 
António Bocarro, assignada pelo imperador de Monomota- 
pá, feita em 1 d^agosto de 1607 nas margens do Mazoe 
ou Manzove, em que aquelle potentado fazia doação á co- 
roa portugueza de todas as minas d^ouro, cobre, ferro, es- 



EM AFRICA 25 

tanho e chumbo que existissem no seu império, isto em 
paga de Diogo Simões Madeira, capitão dç guerra, o res- 
tabelecer no throno, e ajudal-o na guerra contra o Matu- 
zianhe, que lhe tinha roubado algumas terras. ^ 

A selecta sociedade applaudiu muito o major e louvou 
o seu aturado estudo d^investigador, e este, querendo tor- 
nar bem patentes os nossos direitos aos terrenos que lhe 
tinham sido concedidos para explorar, e ainda outros limi- 
trophes, para que não viesse alguém contestar-lh^os, leu 
mais o tratado de vassalagem do mesmo imperador ao rei 
de Portugal, datado de 24 de maio de 1629, que .está no 
livro das MunçSes, e transcripto na collecção dos tratados 
da índia. 

Leu também a doação feita pelo imperador D. Sebastião, 
em 23 d'outubro de 1644, das terras de Chicanga, Gume, 
Mocambo, Macome, Vumba, Biri, Macaracote, Quizava, 
Motava, Samacamba, Motete, Nepongò, Arare, Saranioga, 
Neregueme, Chucumanbara, Cubis, Nesomba, Niguixanga, 
Macraure, Mezangue, Nezangano, Nherano, Chipururo, 
Sono, Inhabane, Mucamba, Cabo das Correntes e outras; ^ 
terras estas incorporadas hoje aos districtos de Manica e 
Sofala, isto em paga dos relevantes serviços que lhe pres- 
tou o capitão mór Sisnando Bayão contra Moneum Sacan- 
dimo. 

A illustrada assembleia abraçou no auge do maior en- 
thusiasmo o major Sotto Maior, quando este, depois dé 
ler um depoimento feito em 1633 por Frei Gaspar Ma- 
cedo, lente de artes e theologia no convento de Senna, ^ 

1 Vide nota n.° 1. — Este documento existe na Torre do Tombo 
do Estado da índia. 

2 Vide nota n.*» 2. 
í Vide nota n.» 3. 



26 PORTUGUEZES E INGLEZES 



-.y*w *«^ •■ x~->- v y~ ^^ 



terminou a conferencia pelas seguintes palavras : «Com 
a vossa illustrada coadjuvação, com os esforços dos meus 
companheiros, tenho fé, senhores, que Portugal, pequeno 
no continente, será na Africa um vasto império, d'onde irra- 
diará a riqueza, a civihsaçSo e a liberdade para os nossos 
irmãos de cor, que existem vilmente escravisados por 
aquelles que os roubam, assassinam e violam, e, na Eu- 
ropa hypocritamente se dizem deffensores da escravatura; 
esses senhores . . . são os inglezes ! » 
••••••••■••"•••k •^••••••. •••••••••••••••• 

No dia 1 d'agosto devia a expedição embarcar nos va> 
pores Màlcmge e Rei de Portugal, da Mala Real Portu- 
gueza, indo o material nos vapores de guerra índia e 
Africa, que lhes serviriam também d'escolta. 

A' última hora o doutor teve que admittir mais um ex- 
pedicionário : era o tenente d'armada real Alberto Carlos 
de Saldanha, rapaz de 21 annos, já conhecido em Lisboa 
pelos seus serviços em Africa, e pela coragem com que 
tinha desempenhado espinhosas e perigosas commiss5es. 

Alberto Carlos só á ultima hora poderá dispor de si, 
porque havia dois dias apenas que regressara d'Angola. 



m 



A CAMINHO D'AFRICA 

A esquadrilha que conduzia a expediçSLo navegava a toda 
a força de vapor. 

A formosa costa do Algarve desapparecia á vista dos 
expedicionários Machonos. 

As ilhas d^Armona e Tavira já confundiam as finas e 
brancas areias das suas praias com as suaves ondulaçSes 
do oceano. 

A alterosa e negra serra de Monchique ia perdendo as 
formas altivas e magestosas sumindo-se no horisonte e no 
infinito. 

O ultimo marco da pátria querida, a derradeira imagem 
do território de Portugal, escondeu-se á vista d'aquelles 
homens arrojados. 

Somente a saudade pelos que ficavam e a lembrança 
pungente da terra natal, senão apagava do seu coraçUo. 

A esquadrilha singrava as aguas do golpho de Cadiz. 

O mar estava sereno e bello, o sol tinha-se sumido nas 
profundezas do oceano, dourando com os seus raios d'agos- 
to as costas da cavalheirosa e ardente Hespanha. 



• / 



28 PORTUGUEZES E INGLEZES 

O cabo de Trafalgar e a ponta de Tarif^ foram dobra- 
dos pela noute adeante. 

Só os vigias e os officíaes de quarto avistaram os seus 
pharoes envoltos em nebrina branca, confundidos na ténue 
claridade do luar. 

Eram 11 horas da manhã quando a esquadrilha fundeou 
debaixo das baterias dos milhares de canhões de Gibraltar. 

Os passageiros tiveram trez horas para ir a terra, 

- Era pouco tempo para admirar aquelle colosso de pedra 

furado por todos os lados, e em todas as direcções, cheio 

d^extensas galerias, em que trabalharam centenas d'ope- 

rarios, e em que os inglezes gastaram milhares de contos. 

Os que poderam fretar barcos, desembarcaram no çaes 
artilhado, onde de todos os lados eram ameaçados pela 
bocca negra dos canhões. 

Internaram-se na rua Real, e, por entre a confusa mul- 
tidão d'andaluzes, inglezes, mouros, judeus, marroquinos, 
argelinos, italianos e de individuos de toda a parte do 
mundo, foram admirando os variados objectos expostos á 
venda nas innumeras lujas. 

Depois de percorrerem diversas ruas de casas de tijolo, 
d'uma uniformidade monótona, obtiveram licença para se 
internar nas entranhas do monte. 

Uma guarnição de mais de seis mil homens occupava 
três ordens de fortificações acasamatadas e vastas praças 
d'armas subterrâneas. 

Caminhos cobertos, rampas, corredores sem fim, largos 
e ruas, ligavam todo aquelle interior de monstro, que se 
não fossem os números e indicações que tinham, seria dif- 
ficil, mesmo aos mais experimentados, sair de tão in- 
trincado labyrintho. 

Os expedicionários não sabiam se deviam maravilhar- se 



EM AFRICA 29 



'-sy.» s^-^^ ^y"./"*, 



mais de ver as novecentas plataformas em que giravam 
canhões de todas as dimensões, desde doze até cem tone- 
ladas, se o trabalho gigante e extraordinário da perfuração 
do ventre da montanha, onde òs ventiladores não deixa- 
vam respirar esse ar abafado e mephitico dos subterrâneos. 

Depósitos d'agua abasteciam aquella multidão de sol- 
dados, sem' o perigo d'ella faltar no mais apertado cerco. 
Diversos armazéns estavam sempre fornecidos para resis- 
tir annos até, ao ataque de grandes forças ! 

Depois de terem visitado os baluartes de Montagne, 
d'Orange, do Rei, do Sul, da Victoria, do Cães Novo, as 
baterias d' Alexandria, Principe Alberto, dos Engenheiros, 
Rosia, Wellington, artilhados com peças de doze e de trin- 
ta e oito toneladas ; de verem as três baterias em amphi- 
theatro do Principe, da Rainha e de Willis, que enfiam o 
eixo do isthmo, o cães velho e a praia hespanhola de Po- 
niente, subiram ao mais alto do monte, á soberba bateria 
Black Mouth, que rematava aquelle collosso com entra- 
nhas d!aço e de bronze ! 

Collosso monstro, que, desde as plantas dos seus enor- 
mes pés, até ao alto da potentosa cabeça, arrojava o ferro 
e o fogo, a morte, a devastação, o destroço e o extermi- 
uio, por todos os poros do seu tronco gigante ! 

D'ahi a pouco a esquadrilha levantava ferro, deixando 
na esteira da popa a poderosa montanha de que os in- 
glezes; em 1 d'outubro de 1704 se apossaram, durante o 
enfraquecimento dos hespanhoes pelas desgraçadas guerras 
da successâo. 

O tratado d'Utrech sanccionou a posse d'esta soberba 
fortaleza, que, depois de reparada pelos seus novos pos- 
suidores, resistiu aos cercos de 1778 e 1782, e resistirá a 
outros futuros, permanecendo nas mãos dos senhores dos 



mares, oomo a chave do mediterrâneo, até que baja um 
grande catadysmo turupeu. 

O amável uommandante da esquadrilha deu ordem para 
que os navios navegassem quanto poaaivel á terra, para ob 

paaaageiroa irem deafructando o bello panorama da costa 
d' Africa no Mediterrâneo, o a viagem n2o ser tào monó- 
tona, oomo o são aquellas, cm que só se avista céu e mar. 

O major Sotto Maior formava um grupo á popa, com o 
commandante du navio, Dr. Lima, padre Maia, uíBciaea e 
engenheiros. 

Os seus óculos d'alcance poderoso estavam lixados noa 
variados contornos da couta de Marrocos. 

Ceuta, a antiga cidade tomada poios portuguezes aoa 
mouros em 21 d'ago8to de 14)5, pelos esforços doa nossos 
homéricos antepassados, tendo á sua frente o celebre e eru- 
dito infante D. Henrique, já ao ia sumindo no horisonte, 
e d'essa portentosa columna d'HerculeB, só existia na men- 
te dos viajantes a recordação dos tempos da fidalga ca- 
vallaria portogueza, e o desgosto de verem fluutuar no 
alto d'aquella9 muralhas, desde a restauraçilo de 1640, a 
bandeira heapanhola, onde deveria eatar içado o estan- 
darte das qniiiaB. 

A' proa dos navios appareeia um rochedo internado pelo 
Mediterrâneo', era uma aentinella avançada dos hespa- 
nhoes, a cidade de Melilla, que elles tinham tomado aos 
árabes em 149)3. 

D'ahi a pouco oa navios deixavam as costas hespanho- 
las, e navegavam nas aguas da colónia frauceza d'ArgelÍa 
c Oran, que, cora aa suas grandes fortificaçCes occupavam 
cento e setenta e dois hectares. Os seua magníficos edifí- 
cios europeus eram avistados pelos expedicionários, que 
ao mesmo tempo admiravam a belleza da vasta enseada 



EM AFRICA 31 

de Mers-el-Kebir, e as altas montanhas do Leão, Trará, 
Thessalaz, Dahra e Ourensenis. 

Apenas tinham passado defronte de Arsew, o decadente 
empório d^opulento commercio, avistaram no fundo d'uma 
enseada a formosa e rica Tenés, cercada dos altivos 
cabos Ued-elAllah, Ténes e Tassilitz, em cujo ventre o 
cobre, o ferro, o carvão e o esplendido mármore, se gera 
e cria, para enriquecer a emprehendedora colónia france- 
sa, que explora estas productoras minas. 

Estava a anoitecer quando os navios fundearam defronte 
d' Argel. 

O bello céu doesta. latitude não tinha sequer uma nu- 
vem; as aguas azues e transparentes do Mediterrâneo es- 
tavam serenas e tranquillas como as d'um lago. 

Os derradeiros raios de sol, que ao longe recolhiam ao 
seu palácio das aguas, douravam as ultimas casas edifica- 
das no alto do monte, aonde chega a formosa cidade afri- 
cana. 

Até ahi a viagem tinha sido um lindo passeio pelo mar, 
e 08 expedicionários Machonos não tinham tido tempo se- 
quer para sentir saudades da pátria. 

Poucos foram aquelles a quem foi concedida licença 
para ir a terra ; a esses ficava o encargo de contar a im- 
pressão que lhes causara a quantidade de francezes, ju- 
deus e musulmanos que passeavam pelo extenso boulevard 
de la Republique, pela praça do Gouvemement, de Máhon, 
ItHey, de la Lyre, Malakoff, Chartres, Bresson Randon, 
Victoire, e pela grande rua da Marinha. 

Esses que tinham admirado a estatua equestre do du- 
que de Orleans, o palácio do governador, d'architectura 
mozarabe, de magnificas decorações e mobilado com um 
laxo e uma riqueza oriental ; as vinte e uma mesquitas 



32 PORTUGUEZES E INGLEZES 

árabes, e o bello oampo, onde correm os mais finos cavai- 
los de raça para, — diriam aos outros companheiros, que 
esta formosa cidade é uma jóia do thesouro da França, e 
um campo militar onde os seus soldados desde 5 de julho 
de 1830, dia em que lhes foi entregue por Husseinben Has- 
sen, exercitavam os seus hábitos de tradiccional bravura. 

Os navios levantaram novamente feno e passaram de 
noute e ao largo de Bugia, Philippe-ville e Bona. 

Ia a amanhecer quando a esquadrilha dobrava a ponta 
de Bizerta, e deixava atraz de si essa famosa Carthâgo, que 
tanto illustrou as artes e as sciencias na antiguidade, e 
tantos heroes e guerreiros pioduziu. 

O dia que despontava, não podia, sem sensivel atraso 
na viagem, ser navegado costa a costa. 

A grande curvatura concava que a bacia de Tripoli des- 
crevia até á ponta do cabo Razat, obstava a que o com- 
mandante proporcionasse á expedição a vista salutar da 
terra. 

Durante este dia, e os seguintes a esquadrilha navegou 
ao mar, tendo por horisonte a immensidade do Mediterrâ- 
neo e o céu puro e azul do sul da Cecilia e da Qrecia. 

No dia 8 de manhã foi com alegria avistada Tolometa 
e os restos dos seus derrocados monumentos gregos e ro- 
manos, e dobrado o cabo Razat. 

D'ali até Port-Said a viagem duraria, quando muito, três 
dias, e os navios iriam juntos da terra quanto possivel, 
para de bordo se disfructar as longas praias do Baixo 
Egypto. 

No dia 11 estavam á vista da grandiosa Alexandria, si- 
tuada n'uma lingua de terra banhada pelo mar e pelo lago 
Mareotis, e ligada com o Nilo por iim notável canal. 

Os expedicionários mal distinguiam com os seus óculos 



EM AFRICA 33 

poderosos, os opulentos e innumeros edificios da cidade 
europea, edificada na parte oriental, e as tortuosas e sujas 
rtias da cidade mahometana, na parte occidental ; recor- 
dando uma e outra as magnificências da segunda cidade 
do mundo da antiguidade, fundada por Alexandre, e que 
viu no seu sólio assentarem-se os Ptolomeus, os Pharaós e 
os dezares, e teve por senhores os romanos, os árabes, os 
turcos, os francezes, e por ultimo os inglezes e os turcos!! 
Ali existia uma das sete maravilhas do mundo, o gran- 
dioso pharol da ilha de Pharos, o magestoso templo de Se- 
rapis, todo construído do mais fino mármore, e a celebre 
columna de Pompeu e as tradicionaes Agulhas de Cleópa- 
tra ! 

Ali havia a maior e a mais rica bibliotheca do mundo, 
quatro mil magestosos palácios, quatro centos circos para 
divertimentos públicos, três mil e tantos banhos, — pontos 
de reunião da mais fina sociedade e das formqsas damas, 
e a quantidade fabulosa de doze mil jardineiros, somente 
para abastecer os milhares de explendidos jardins particu- 
lares, de flores raras, de todas as partes do mundo I 

Cidade celebre por muitos motivos, e que ainda hoje é 
um dos empórios mais importantes do commercio africano, 
europeu e asiático. 

A fòz de Rosetta e Damietta foram passadas a toda a 
força do vapor ; havia o maior empenho em chegar a Port- 
Said a horas de tomar o carvUo necessário para a traves- 
sia até Aden, onde novamente se abasteceriam ; e por isso 
os expedicionários não poderam ver em Rosetta a grande 
mesquita e as casas formadas de tijolo vermelho, que á luz 
do sol poente parecem as labaredas do inferno de Dante; 
e em Damietta, que ficava a 11 kilometros da foz do Nilo, 
os seus luxuosos banhos e a bcUa escola militar d'infanteria. 



84 PORTUGUEZES E INGLEZES 

O Nilo, com as suas bocas, formãiido delta desde o Cai- 
ro, também mal foi entrevisto ao longe, e esse rio, que 
tem sido ha tempos immemoriaes objecto de tantos esta- 
dos, desde as descripç5es de Heródoto, Eratosthenes, Plí- 
nio, Séneca, das expedições ordenadas por Nero, das in- 
formações de Ptolomeu, dos importantes trabalhos de Duarte 
Lopes, até aos de Burton, Speke, Baker, Levingston, Ca- 
meron, Stanley, Bellefonds, Gessi e Mason Bey, com os 
importantes canaes artifieiaes, e os bellos lagos, e com 
os problemas, ainda não resolvidos de todo, das suas 
nascentes, apenas foi visto misturar as aguas amarella- 
das com as aguas azues e transparentes do Mediterrâ- 
neo. 

Eram 6 horas da tarde quando os navios largaram ferro 
em Port-Said, e que o commandante fez saber aos passa- 
geiros que ia metter carvão, e só no outro dia ás 7 horas 
da manhã poderia estar no canal de Suez. 

Os passageiros aproveitaram testas ferias de viagem, e 
como os collegiaes que, prezos ao banco das aulas, se pre- 
cipitam para a rua ao toque da sineta, assim elles foram 
para terra exercitar as pernas prezas, havia doze dias. 

Os expedicionários ao pisar as ruas de Port-Said, julga- 
ram-se n'uma cidade da Europa. As construcções em coisa 
alguma eram semelhantes ás construcções árabes, a não 
serem os telhados, um pouco ponteagudos ; porém a gcan- 
de quantidade de chalets, verdadeiramente parisienses, fa- 
ziam logo esquecer esse nada, para lembrar o formoso Pa- 
ris, com as suas grandes lojas, botequins, roletas, cafés 
cantantes, e o movimento de milhares de pessoas de todas 
as partes do mundo, que passavam e repassavam pelas es- 
paçosas praças e largas ruas. 

No outro dia, ás 7 horas, os navios levantavam ferro e 



EM AFRICA 35 

deixavam essa cidade, que deve a vida ao grande génio 
de Lesseps, e é irmã gémea do Canal de Suez. 

Os quatro navios, que formavam a esquadrilha, entra- 
ram no estreito canal, tendo que diminuir a velocidade do 
andamento a duas milhas por hora, para que a ondulação 
das aguas não fizesse derrocar a areia das margens. 

A' mente do majbr Sotto Maior, e dos expedicionários 
cultos, veiu a lembrança do grande vulto d'Affonso d'Al- 
buquerque, o primeiro que concebeu o plano de ligar o 
Mediterrâneo com o oceano indico, por meio do canal de 
Suez, e abbreviar assim, o caminho das índias, idéa que o 
sábio e tenaz Ferdinand Lesseps levou á realidade em dez 
annos, sendo começados os trabalhos de construcção em 
1859, e os de estudo em 1855, pelos engenheiros france- 
zes ao serviço do Egypto, Linant Bey e Mongel Bey. 

Os navios, com pequena velocidade, foram navegando 
pelos cortes d^areia no extremo oriental do lago Mensaleh, 
atravessaram o lago Ballah, e internaram-se n^uma das 
partes do verdadeiro canal, isto é, no corte desde o lago 
Ballahaté ao lago Timsah, onde está Ismailia. 

Era noite quando ali chegaram, e a esquadrilha teve 
que esperar a passagem d 'outros navios que vinham do lado 
opposto, porque o canal tem muitos sitios, que não com- 
portam a passagem de dois barcos a par. 

O canal até ali era ladeado d^uma e d^outra margem 
pela vasta areia do deserto, terror das caravanas, monóto- 
na, insuportável á vista, e perigosa por todos os motivos; 
causando a morte com as suas tempestades, e ophtalmias 
com as ténues nuvens, que sempre andam n'aquella atmos- 
phera de fogo. 

Nenhum dos passageiros quiz ir de noite a terra ver Is- 
malia, que coisa alguma tem de notável, a não ser o pala- 



\ 



36 PORTUGUEZES E INGLEZES 

cio do Kediva, e o seu bello arvoredo, que contrasta com 
toda aquella aridez suffocante que a cerca. 

De madrugada, a esquadrilha tornou a navegar no es- 
treito e monótono canal, que apenas tinha para lhe animar 
a perspectiva árida, a rara e rachitica vegetação, com que 
á força de cuidados e desvelos os guardas das diversas 
estações teimavam em rodear as suas casas isoladas. 

Esta mesquinha paisagem só teve um momento de va- 
riedade, e foi quando navegavam a grande bacia dos La- 
gos Amargos. 

A's duas horas entraram no golpho de Supz. 

A cidade ficava a distancia e como também não offere- 
cia curiosidades notáveis, nâo houve o desejo de ser visi- 
tada. 

O Golpho de Suez foi navegado a toda a força de va- 
por, porque havia necessidade de recuperar o tempo perdido. 

O massiço do Sinai, as montanhas de Um-Shomar, Ser- 
bal, Mousa ou de Moysés, Horeb, Santa Catharina, d'um 
calcareo e granito vermelho escuro, como se estes montes 
estivessem em fusão, passaram rápidos á vista dos viajan- 
tes, e lá ficaram erguidos na peninsula arábica, com todas 
as lendas biblicas doesse vulto egrégio, Moysés, que no alto 
do monte Sinai recebeu ^s tábuas da lei, esse poema da 
confraternidade humana. 

O calor era excessivo : as bombas de bordo refrescavam 
continuamente a coberta e os tríplices toldos dos navios. 
Os passageiros abafavam, e os banhos que procuravam 
para refrescar a abrazada epiderme, pouco modificavam a 
temperatura asphyxiante da travessia do mar Vermelho. 

Os navios navegavam em pleno mar, e só uma vez ou 
outra era avistada alguma insignificante ilha da costa ará- 
bica, ou alguma terra da beira mar. 



« 



EM AFRICA 37 



V r\^r\xf^ yN-/^ y v,-^ /-*. • v 



Tres dias depois passaram perto de Djeddah, cidade 
árabe de casas muito cai idas e telhados ponteagudos,.onde 
existe o tumulo d'Eva, a primeira mulher que habitou a 
terra, e d^onde partem as grandes caravanas que vão a 
Meca e a outros pontos buscar todas as riquezas do fabu- 
loso oriente, com o grave risco de serem mortos pelos be- 
duinos, os senhores do deserto. 

Dois dias depois estavam em frente de Hodeida, tendo 
deixado atraz de si toda essa immensidade de ilhas com 
base de coral, que bordam a costa. 

No dia 20 fundeavam em Aden, aonde deveriam tomar 
carvão sufficiente pára ir até á enseada dò Búzio e para 
o regresso. 

A expedição precipitou-se nos barcos que a conduziu a 
terra, ávida de pisar a crosta d'esse globo que ha dias 
apenas entreviam das amuradas dos navios, como miragem 
fugitiva. 

Em poucos momentos a expedição em massa desem- 
barcava no cães Steamer Point e tornava a ver as pesadas 
fortificaçSes com que os in^ezes desde 1839 fecham o 
mar Vermelho eo caminho das opulentas índias. 

Por toda a parte, Aden, a antiga Ademum^ fazia recordar 
as glorias e os feitos heróicos dos portugiiezes, e paraattes- 
tar a nossa posse antiga ainda ali existem as famosas cis> 
temas com que os nossos maiores, queriam suprir a longa 
estiagem d^aquella latitude, e que os inglezes hoje atenuam 
com as poderosas machinas de distillação da agua salgada. 

A expedição percorreu as quatro milhas que separam as 

edificaçSes modernas do cães, da antiga q velha cidade, indo 

â maior parte a pé, porque os trens não chegavam para 

tanta gente. 

Depois de passearem pelas tortuosas ruas, de terem jan- 

3 



38 PORTUGUEZES E INGLEZES 

tado razoavelmente nos bons e maus hotéis, de escaparem 
ás nuvens de vendedores ambulantes que os perseguiam sem 
tréguas a querer-Ihes vender mil nadas, — os expedicioná- 
rios voltaram para bordo e os navios levantaram ferro e 
navegaram a toda a força das machinas no estreito de Ba- 
bel-Mandeb, deixando á popa as costas da Árabia Feliz, 
com toda a sua aridez e as suas elevadas e vermelhas mon- 
tanhas. 

Durante oito dias não tornaram a avistar terra, nem 
mesmo quando dobraram o cabo Guardafui na ponta mais 
oriental da Africa, no oceano indico. 

No dia 28 passavam á vista de Zanzibar, onde também 
não desembarcaram, recordando somente os passageiros 
que aquella ilha e a costa fronteira tinham sido theatro 
das façanhas dos vultos mais proeminentes da historia pá- 
tria. ' 

No dia 5 de setembro ás 4 horas e meia da manhã, a 
esquadrilha lançava ferro na enseada do rio Busio. 



*í 



IV 



A NAVEGAÇiO DOS RIOS BUZlO E REVUE. 
DE MASSI-KESSE AO SAVE 

O almoço ainda foi a bordo. 

Era o almoço da despedida. 

N^aquelle dia todos tiveram aactorisaçSo para, no ulti- 
mo abraço dos que se iam internar no sertão selvagem, e 
no dos que voltavam á pátria querida, exprimirem os sen- 
timentos da sua alma, sem que o rigor da disciplina de 
bordo entravasse a expansão dos seus corações. 

Havia até mesmo um banquete á proa dos navios, onde 
os vivas genuinamente portuguezes, e as saúdes aos que 
partiam tinham sido permittidos pelo valente comman< 
dante da esquadrilha. 

Os officiaes e o estado maior da expedição também es- 
tavam um tanto commovidos ao pronunciarem as saúdes 
de despedida, commoção que o estalar das rolhas do Cham- 
pagne não dissipava completamente. 

Os navios tinham subido o Búzio até onde as sondas 
lh'o haviam permittido. 

Pouca era a distancia navegável para aquelles navios. 



40 PORTUGUEZES E INGLEZES 

que demandavam muita agua ; com tudo ainda consegui- 
ram fundear a uns vinte e cinco kilometros da foz. 

D'uma margem e da outra só extensas praias d'areia se 
avistavam, áridas e alagadas, sem vegetação importante, 
a não ser alguma mirrada graminea que a çpoca das chu- 
vas desenvolvera prematuramente, para logo se seccar aos 
calores abrazados do sol africano. 

Â's nove horas da manhã do dia 5 de setembro de 18... 
chegava o primeiro barco a terra, conduzindo o major 
Sotto Maior, que ia procurar o sitio para assentar o seu 
acampamento. 

O local escolhido foi a margem esquerda do rio, ao sul 
da aldeia Cumba. 

Âli o terreno tinha uma. pequena elevação e X) acampa- 
mento podia ser organisado sem que temesse a visita dos 
crocodilos ou dos cavallos marinhos, habitantes aborígenes 
do rio, orgulhosos e sôfregos do seu dominio. 

As barracas do systema Tollet aperfeiçoado foram as 
primeiras a serem armadas. 

No mastro erguido em frente da habitação do major, 
flúctuava a bandeira formosa e heróica das quinas. 

Só depois das 6 horas da tarde é que o acampamento 
estava difíniti vãmente assente, e que as cosinhas de cam- 
panha e fornos mechanicos preparavam o jantar e o pão 
para os expedicionários. 

Os chefes das differentes secçSes procederam á chama- 
da e o major teve o prazer de verificar que responderam 
a ella os seguintes individues : 



EM AFRICA 41 

Operários — carpinteiros, ferreiros, sapateiros, ai* 
fayates, pedreiros, cabouqueiros, mineiros, caldei- 
reiros, e outros mesteres 177 

Ourives, fundidores, gravadores, typographos, tele- / 

graphistas 18 

Dentistas e barbeiros 3 

Espingardeiros 2 

Mulheres, casadas e solteiras 81 

Mulheres e filhos dos chefes 20 

Creanças ...» 72 

Soldados para o corpo de policia, sargentos e serviçaes. 500 

Estado maior. 40 

Somma 913 

Até ali nem uma doença se tinha manifestadp, e só o 
incommodo do enjoo causticára alguns que despresaram o 
celebre preservativo do açafrão sobre o estômago, que os 
antigos navegadores usavam, naturalmente desde que des- 
cobriram tâo precioso remédio. 

A expedição tinha que esperar ainda alguns dias a 
chegada d'iins navios que traziam uns quarenta camelos, 
que o major desejava utilisar para transporte das baga- 
gens e para a communicação entre a Machona e a costa, 
até que a linha do caminho de ferro já estudada pelo go- 
verno desde a Beira a Massi-Kesse, pelo valle do Fungue, 
estivesse concluida e se adiantasse até Machona. 

Os navios fizeram-se novamente ao mar, e os adeuses 
saudosos dos que ficavam eram cheios da suave melanco- 
lia, que lhes causava o ver afastarem- se aquelles pontos 
de contacto, que os ligava ainda á Europa, á terra onde 
haviam nascido, onde ficavam os seus amigos, e, quem sa- 
be ? onde talvez não voltassem mais I 






42 PORTUGUEZES E INGLEZES 



^ ^•^.r y y y ^ j" .'^ ■-. /- y>,y^-f .^n-^v^-n^ ^ ,>"-'- ^ ■.'- .^ . 



Como (juo para* dissipar estas tristezas, a expediç&o te- 
ve que receber o regvlo de Cumba. 

Para quem nunca tivera a soberana honra da visita 
d'unH potentado africano, havia na recepção o mérito da no- 
vidade. 

Os membros da expediç^ que da Africa só salnam o 
nome, e mesmo aquelles que só dos livros tinham conhe- 
cimento doestas solemnes visitas não perdétam uma unioa 
particularidade da scena que teve mais de burlesca do que 
de séria. 

Na África, uma aldeia composta d'uma dúzia de caba- 
nas, (cubatas) com trinta ou quarenta habitantes, tem logo 
o seu chefe, senhor absoluto da vida e da fazenda d'aquel- 
les desgraçados; chefe que muitas vezes toma o nome 
pomposo de rei ! * 

Estes reis grutescos, beberrSes, maus, mandriões e va- 
dios exercem uma tal tyrannia nos pobres dos seus súbdi- 
tos, que ás vezes, mas muito raras, pagam com a vida 
o seu reinado de despotismo ; porem os desgraçados pouco 
lucram com isso, porque o que elegem, ou aquelle que por 
astúcia, ou por outro meio toma as rédeas do governo, 
pouoo melhor sae do que o seu antecessor. 

Como no mundo nao ha regra sem excepção, existe 
uma ou outra a esta, mas mui poucos são os régulos que 
nao abusam da sua auctoridade em proveito próprio e dos 
seus apaniguados. 

O regulo de Cumba era um p< uco civilisado, civilisaçâo 
que os seus trinta annos de trato com os portuguezes, que 
viviam no praso de Fusse, apenas o tornara um tanto ra- 
zoável na presença dos brancos, o menos despótico com 
08 seus, emquanto não estava bêbedo. 

* Vide Noticia histórica sobre Môçambújiíe. 



.K 



EM AFRICA 43 

Em compensaçSío doestes predicados, habituara-se ao gosto 
do rhum europeu por uma tal forma, que era o que ello 
mais apreciava dos melhoramentos e progresso doesta parte 
do mundo em que vivemos. » 

Cbamava-se Chicoaia, o regulo de Cumba, e era um dos 
mais ricos senhores das terras próximas da costa. 

A sua aldeia âcava situada no sopé dos montes Inhaoxo, 
entre o Bio Btikio e o Muda, affluente de Fungue, e fazia 
parte do antigo reino de Quiteve. 

No tempo da escravatura o regulo de Cumba tinha sem- 
pre um deposito de cabecirúios d/alc<xtrào promptas a em- 
barcar em qualquer navio dos honrados inglezeSy que ne- 
gociavam com elle n'este productivo género de mercado- 
ria, e o bom do regulo preferia a tratar com os descen- 
dentes de John Buli a outros quaesquer negreiros, porque, 
dizia elle, são tao bêbedos como eu, e assim entendemo- 
noB melhor. 

Tempos felizes eram esses, que tanto a negreiros in- 
gleses, como a indígenas, deisou bem gratas recordações, 
e a que os homens barbaras da Europa puzeram fatal ter- 
mo, pelo luenos na costa. 

regulo Chicoata fez a m& entrada no acampamento. 

Acompanbavam-n'o os séculos, rnacotas, * cirurgião, fei- 
ticeiro e mulheres que formavam a sua corte. Guardas ar- 
mados de boas espingardas inglezas e outros individues da 
aídeia, completavam ao todo umas cincoenta e tantas pes- 
soas. 

ChicoíUa vinha elegantemente vestido ! 
Enfiava umas calças, que em tempo tinham sido de ris- 
cado azul e branco, subindo-lhe um palmo acima do arte- 

1 Fidalgos e conselheiros. 



44 PORTUGUEZES E INGLEZES 



'^^^ .^ ~^ ^'.^ y ^- »' ' • 



lho, deixando ver as esquálidas e negras cannelas nuas, 
arrematadas por um pé nojento e descalço. Trajava gar- 
bosamente uma linda casaca toda guarnecida de galSes 
amarellos, com que algum 'archeiro da casa real portu- 
gueza fizera as delicias das sopeiras da rua dos Capellistas 
em dia de procissão de Corpus Christi. 

O peito secco,e o estômago proeminente estavam comple- 
tamente nús e destacavam. do encarnado do estofo dacasaca. 

Na cabeça trazia um chapéu de palha de puro fabrico 
ínglez, mas tão cheio de nódoas e de lama, que parecia 
ter sido desenterrado d'algum barril de lixo, por fonointo 
rafeiro vadio. 

Na mão direita hasteava com orgulho o bastão de mando. 

Esta grutesca figura pavoneava-se orgulhosamente en- 
tre a sua corte, ufano de si^ da sua pessoa, e do seu Ivxo. 

Alguns dos fidalgos envergavam simplesmente uma farda 
velha de soldado d'infanteria, casacos de brim, camisolas 
de marinheiro, completando tão promíscuo vestuário a suja 
tanga d'algodão. 

Outros, porem, só a tanga traziam. 

Ás mulheres ostentavam a plástica em toda a sua 
belleza ou deformidade, e somente os rins e as partes no- 
bres estavam tapadas com curta tanga. 

O cortejo foi recebido á porta da patissada em cons- 
trucção, pelo major e pelo estado maior, com toda a so- 
lemnidade de taes actos entre pessoas que querem viver co- 
mo bons amigos. 

<) regulo trazia o ^g\x presente^ e vinha receber o pre- 
sente do branco. 

O presente de Chicoata consistia em trez carneiros, um 
cesto d'inhame, outro d'ovos, e duas gallinhas, prssente 
menos mau para aquella gente. 



EM AFRICA 45 



■~^'^-/~-r ^'N.' y^ ^ 



O major retríbuiu-lhe oom uma peça de riscado, e três 
botijas de rhum, qne satisfizeram a beberrice de Chicoata, 

O regulo, depois de se informar do motivo da expedi- 
ção, offereceu os seus serviços e combinou com o major 
diversos fornecimentos de bois, carneiros, gallinhas, e gé- 
neros do pais, emquanto ali permanecessem. 

Com tão boa e serviçal pessoa, o major quiz ser bas- 
tante amável, e depois de lhe mostrar as diversas secções 
do acampamento, quedeixaram maravilhado Chicoata, déu- 
Ihe a provar diurna celebre aguardente de canna, que fez 
o pobre do homem terminar a sua visita aos bordos, como 
em dia de temporal, sem cabo de vai-vem, tendo que re- 
tirar para a aldeia ás costas dos conselheiros e minis- 
tros, em tal estado d'embriaguez, que deveras compro- 
metteria a dignidade real, se a corte não estivesse já 
de ha muito acostumada ás borracheiras do seu real se- 
nhor. 

O major nHo queria gente inactiva, pois sabia bem, 
e por experiência própria, que da ociosidade nascem to- 
dos os vicios ; portanto n'aquelle mesmo dia estabeleceu o 
serviço diário. 

Uma secção de caçadores percorreria a serra próxima 
e as florestas visinhas, ficando incumbida de fornecer a 
expediçilo de carne fresca. 

Outra visitaria os rios Muda, Fungue, Búzio e Ensom- 
ba, todos próximos mais ou menos do acampamento, e fi- 
cava encarregada da parte piscosa. 

Outra construiria pequenas jangadas, para transporte de 
viveres e outros objectos pelo rio, até onde este fosse na- 
vegável, podendo n'esse caso os camelos serem aproveita- 
dos para cavallaria. 

Os marinheiros experimentariam os barcos movidos pela 



4G PORTUGUEZES E INGLEZES 



^j"^^ .y^^r-^/",^ /^ -^.^^N^^- 



electricidadò, e os outros de caoutobouc e madeira, exer- 
citando-se no seu armamento e desarmamento. 

A uma outra secção era commettido o encargo da lim- 
peza e hygiene do acampamento. 

Os oosinheiros, os barbeiros, os alfayates e os outros 
membros da expedição também não ficavam parados. 

O estado maior foi incumbido de vigiar os differentes 
serviços, tirar vistas photographicas, fazer levantamentos 
topographicos, estudar o terreno geographica e geológica- 
mente, fazer outros estudos ethnographicos, orographicos, 
antbropologicos, etnológicos e mineralógicos. 

O diário da expedição ficou enriquecido com os precio- 
sos estudos feitos nos dez dias de permanência no^acam* 
pamento de Cumba. 

Os camelos tinham chegado de TeneriíFe, e no dia 16 
de setembro a expedição seguiu, embarcada, a pé e a ca- 
vallo, o rio Búzio e o seu yalle. 

Á expedição com estes meios de transporte dispensava 
os carregadores e avançava para o sertão com grande com- 
modidade e rapidez. 

Â' noite toda a expedição acampou na margem esquer- 
da ; margem que era a fronteira do districto de Manica, 
sendo a direita a fronteira de Sofalla. 

O rio Búzio que, como vem n'alguns diccionarios do 
geographia, nasce na serra Chitavacanga ou Chitavatanga, 
não tem a sua origem na mãe do Save, nem tão pouco re- 
cebe uma só gotta doesse famoso rio, hoje nossa fronteira 
léste oeste com as terras de que a Inglaterra nos despo- 
jou. 

O Búzio, ainda pouco explorado para alem do seu arco 
natural, parece-nos, (segundo o mappa da = commis- 
são de cartographia, = na sua carta do Districto de Ma- 



EM ii|PRICA 47 

nica e dos territórios circvmvisirAos, de 1877) que tem as 
suas nascentes em T'chamaohana, no Monte Silindi Inha- 
cufer^} onde ha umas pequenas lagoas que devem forne- 
cer as nascentes por qualquer canal subterrâneo, sendo 
desde logo engrossado por diversos riachos que nascem 
nas serras do território do celebre Gungunhana, e pelos 
rios Ubaga ou Ubaza, Muengueze, Guchone ou Oinone, 
Mussuarse, Nhamase, Muchenese ou Muchene, Guchone, 
ou Guinone e outros que correm de sul para norte. 

O Búzio tendo recebido os tributos poderosos do En> 
so^ba, Mujone e Revue, confunde as^ suas aguas no arco 
natural com o Mussapa, que nasce nas serras Gt)rima e 
Menaia e corre na direcção L. S. O., juntando se com o 
Mufumosi e o Lussiti. 

O major desejava aproveitar o mais possivel a via flu- 
vial, o que facilmente conseguia, por dispor de barcos de 
fundo chato, muito leves e de pequena bocca. 

Em vista d'istO| resolveu subir o Revue, tirando os bar- 
cos para terra quando tivesse que transpor algumas ca- 
choeiras, cataractas ou rápidos, como as Rochas Inharo- 
mírua, e seguir o rio até próximo das suas nascentes, aban- 
donando-o em Manica ou Massi-Kesse, deixando as janga- 
das, e tomando d'ah para Machona, pelo parallelo 19.®, a 
via ordinária, isto é, atravessando montes, valles, flores- 
tas e campos, alguns nos quaes o pé do homem ainda nao 
pousou, e onde jamais tinha sido avistado um branco. 

O major contava com os bois cavallos, com as maxilas 
indigenas e outros meios de transporte, para conduzir as 
senhoras e os que não podessem ísjlqv jornada d'outra 
forma. 

A expedição teve um dia de descanço. 

Ficou acampada na meia encosta da serra próximo da 



48 PORTUGUEZEa E INGLEZES 

conflaencia do Revue com o Bozio, no território de Quite- 
ve, emquanto o major, o capitão Estrella, Villar^ Souza, 
Alberto Carlos e outros officiaes iam fazer um reconheòi- 
mento ao arco natural do Búzio, na confluência do Mub- 
sapa, e tirar algumas vistas photographicas dos apraziveis 
e amenos legares d'aquella parte do rio. 

Não deram o seu tempo por perdido, e ficaram deveras 
maravilhados com o capricho da natureza, em formar à!um 
rochedo tosco e informe um arco que atravessa d-uma á 
outra margem o Búzio, obra em que a mão do homem gas- 
taria annos e grossas quantias. 

No dia seguinte de manhã a expedição subia o Revue. 

Deixava definitivamente a zona b^úxa e internava-ée 
já na zona media. 

Âs margens do rio, arenosas e áridas, revestidas aqui e 
ali d'algum cerro de tom negro e rubro, de granito e quar- 
tzo, onde a rachitica vegetação vivia a custo, haviam sido 
substituidas pela mais ubérrima e explendida paisagem. 

Os cactos, as gramineas, as mimosas, as coniferas, as 
euphorbias definhadas e o enfésado adansonia digitata, ^ 
deram logar aos frondentes cajueiros, imbondeiros, pal- 
meiras, figueiras, tamarindeiros e outras arvores annosas 
e gigantes, até ao colossal e magestoso bao-bab. 

 região feia, anda, estéril e adusta foi substituida pela 
mais bella, poética e rica flora. 

Enormes massiços de vegetação arbórea, enlaçados por 
grossos braços de trepadeiras, cipós e fetos do tamanho 
d'arvores, cobriam completamente diversas e extensas fa- 
chas de terreno, tornando fresco e tépido aquelle ambiente 
de húmus. 

1 Imbondeiro. 



EM AFRICA ' 49 

A expedição tinha chegado ás Rochas Inharomirua, a 
nus quarenta kilometros da confloencia do Revue com o 
Búzio. 

^ Os barcos e as jangadas tiveram que ser tirados para fora, 
e, com algum trabalho, passados ás costas ou arrastados 
sobre ramos, p^ra montante doestos rápidos de grande al- 
tura, que mais podem ter o nome de verdadeiras cata- 
ractas, do que de simples quedas d'agua. 

O regulo Grornani, e os sobas de Nahange e Muricane, 
do paÍ2 de Quiteve, e o de Chisito e do Zanve, tinham 
ido com alguns dos seus cumprimentar o major, e fazer 
com elle permutas de arroz, café, farinha de man- 
dioca, milho, melões, limdes, figos, cabras, bois e outros 
géneros, por fazendas, facas, espingardas, pequenas pisto- 
las e outros objectos. 

Os ptetos de Quiteve eram muito tratáveis, esbeltos è 
iimp^B, e diziam-se descendentes da raça moura. 

O major, a troco d*uma pequena gratificação, obteve 
d'elles, com facilidade, o auxilio do transporte das baga- 
gens, barcos e mercadorias, de jusante para montante, 
'nas quedas d'Inharomirua. 

Aqui ia-se dando um lamentável desastre. 

As canoas e jangadas, á medida que passavam para a 
parte ' superior do rio, eram fortemente amarradas á mar- 
gem. 

Já estava mais de metade da flotilha a montante das 
quedas d'agua, quando uma jangada, ou por mal preza, 
ou por butro motivo qualquer, garrou e correu sem go- 
Temo mi direcção do precipio. 

Um único homem estava n'ella arrumando os utensílios ; 
era um alegre rapaz de 23 annos, creado particular do ca- 
pitão Estrella, e chamado João Fernandes. 



50 PORTUGUEZES E INGLEZES 



'-'■^^-' ^s^w* -^^- ^\^-^'^\y\ 



O desgraçado não sábia nadar. 

A jangada ao principio deslisou suavemente, mas aquella 
serenidade era um engano e uma períidia. Bem depressa 
se tornou em vertiginosa e rápida carreira para o abys- 
mo. 

O precipicio rugidor e fatal já estava próximo ; só Deus 
Halvaria o infeliz ! 

Todos os membros da expedição e os cafres ficaram 
mudos de espanto! 

D'entre esta multidão, a que a vista d'uma morte hor- 
rorosa, tcrrivel e desgraçada, tirara por momentos a cons- 
ciência da vida, a acção e o movimento, sahiu um homem 
que, rápido como o raio, rasgou o fato que vestia, e arre- 
messou-se á aguai 

Os olhos do pobre naufrago fitaram- se n'elle. 

Com certeza que a alma d'estes dois homens faliou. Um 
disse ao outro, com essa linguagem expressiva dos olhos e 
dos gestos, — arremessa-te ao rio — e outro comprehendeu. 

8ó assim escaparia a uma morte certa. 

O turbilhão das vagas era enorme e medonho. O rugido 
que faziam ao precipitar-se, semelhava o troar da ar- 
tilheria. 

Era horrorosamente bçUo todo aquelle conjuncto da for- 
ça das aguas, dos redemoinhos, dos sons roucos e dos cam- 
biantes de luz. 

E sobre este inferno liquido, dois homens luctavam com 
a morte ! 

Um, pobre creado sem nome nem familia, o ou- 
tro, um official da marinha portugueza, o tenente Al- 
berto Carlos, de quem a pátria tinha muilo a esperar. 

Ambos porém, eram homens e a sua morte seria da mes- 
ma forma sentida. 



; 



EM AFRICA 51 



^ ■«/"^•"v/' ^ v/ Vs^~v ■«'>-/%yxy\^"v/^.^'v^"'-'X-^^^*''' -^ \»"^* ■v./ s-^^v^ w ''*/'^w '• 



Em meia dúzia de braçadas o tenente alcançou o sitio 
onde o pobre João Fernandes se lançara á impetuosa tor- 
rente, mergulhou e . . . desappareceu I 

As aguas, escorregadias e rápidas, tinham-se difiniti vã- 
mente assenhoreado da jangada, que, como uma setta, 
correu veloz para o precipício aonde se lançou, desfazen- 
do- se na queda. 

£m terra, nem um coração batia; a vida tinha-se con- 
centrado nos olhos d'aquella gente. 

De repente, d'envolta com as revoltosas ondas espuman- 
tes, surgem dois homens I 

Um sobraçava o outro, o a custo nadava com as pernas 
e com o braço livre. 

Houve um momento d'alegria, rápido como o relâmpago. 

Os dois homens já estavam a grande distancia da mar- 
gem ; era humanemente impossivel alcançal-a a nado ! 

No entanto deslisavam para o precipício ! ! 

EntSo, em terra, ji não ppderam mais ; as mulheres nao 
se contiveram, em altos gritos e lamentoso choro, roja- 
ram-se pelo chilo e arrancaram os cabellos. 

Os homens, pallidos e envergonhados da sua impotência, 
deixavam cahir, em silencio terrível, pesadas e quentes la- 
grimas que lhes escaldavam as faces. 

No meio do terrivel rio ergaia-se um tosco rochedo ; as 
aguas ali, batiam desesperadas, e resaltavam espuman- 
tes. 

Os dois infelizes iam sendo arremessados para elle, 
mesmo pela força da corrente. 

Os seus esforçoslimitavam-se a conservar aquella direcção. 

De terra comprehenderam-os. 

Um sopro d^allivio, misturado com um bafo de espe- 
rança, passou por aquelles coraçdes atribulados. 



52 PORTUGUEZES E INGLEZES 

A* força de destreza e de coragem, o tenente Alberto 
Carlos attingíra com o seu companheiro o desejado ro- ^ 
chedo ! 

Estavam momentaneamente salvos ! 

O major Sotto Maior comprehendeu o que tinha a fa- 
zer. 

Grossos cabos de fio de ferro foram amarrados á popa e 
proa do barco Vasco da Gama, de potente machina 
eléctrica. 

Os cabos foram passados ás annosas arvores da margem^ 
os quaes uma centena de homens seguraria e alaria, 
quando fosse necessário. 

O Vasco da Gama navegou até meio da corrente. N'este 
ponto foram inúteis todos os esforços do homem do leme 
para conservar a proa ao rochedo. 

Foi preciso .pasaar á outra margem e ali auguentar ou- 
tros cabos. 

O barco, assim sustido, poude então descer até á re- 
volta das aguas, e os pobres condemnados á morte volta- 
rem ao seio dos seus ! 

O tenente Alberto Carlos, depois d^eseapar a uma morte 
horrorosa, ia morrendo asphyxiado com os abraços e bei- 
jos dos homens e das mulheres que compunham a expe- 
dição. 

Sem outros acontecimentoa maiores, o major seguiu rio 
acima, visitando os povos de Muricane, Nabange, Bora, 
Mahongo, Zoasamoio^ Shingore, Shingosi, Granda, M^pata 
e outros, onde ia contratando cafres para o serviço da po- 
licia e outros mesteres, e estabelecendo contractos com 
régulos e sobas, para auxiliarem os seus homens no tran- 
sito, que desejava por ali estabelecer,, de Machona á costa. 

Em Massi-Kesse, o rnsi^or tev.e um descanso de oito ^ 



EM AFRICA 53 

dias ; o necessário para dar nova forma e peso aos fardos, 
que d'ali em diante tinham de ser levados pelos camelos 
é homens. 

 expedição esteve no forte portuguez e nas casas da 
companhia de Moçambique, exactamente nos mesmos si- 
tios de que mais tarde os inglezes se apossaram á força, 
e onde o major Caldas Xavier e o capitão Augusto Bet- 
tencourt mostraram que ainda havia homens n'este desgra- 
çado paiz, a quem a vida não é estorvo, quando se trata 
da pátria moribunda. 

A região era montanhosa e muito saudável. 

Em quatro pequenas jornadas a expedição acampou nas 
margens dó Save, onde teve novo descanço. 

N'este ponto encontrou dois emissários da rainha de 
Conji 6 Machona, que vinham pedir soccorro aos portu- 
gaezes contra as correrias e invasões dos Matebeles. 

O major despaohou-lhe immediatamente o capitão Es- 
trella e o tenente Alberto Carlos com parte da expedição 
que estava menos fatigada, e que tinha dado provas de 
maior energia. 



t 



HA6ELINA, A FILHA DA RAINHA DE CONJI 



Na serra Mochena, a mil duzentos e vinte metros de al< 
titade; existia uma pequena povoação, que pela sua im- 
mensa altura, parecia ter sido edificada para ninho de 
águias. 

Esta pequena aldeia tinha o nome de Conji alto, por 
haver no sopé da montanha e na margem sul do rio Inco- 
cuesi outra povoação com o nome de Conji baixo. 

O Conji alto e o Conji baixo eram o refugio da velha e 
dosthronada rajnha Mangira, senhora de Conji e Machona. 

Quando o Lo-Bengula invadiu o reino de Machona, de- 
pois de ter commettido toda a sorte de atrocidades, pró- 
prias de gentio em guerra, a rainha refugiara-se no seu 
ultimo baluarte com alguns dos seus fieis súbditos que es- 
caparam ao morticinio ou á forquilha da escravidão. 

A posição de Conji era inexpugnável ; ao norte estava 
defendida pelo rio Incocuesi, ao sul pelo Ucuela ou Qaele, 
ao oeste pela juncção d'estes dois rios e a leste pela ex- 
tensa bacia das nascentes d^elles. 



EM AFRICA 55 

A montanha, no ponto onde estava Conji alto, era mes- 
mo a pique, e qnem não soubesse o segredo do seu aces- 
so, despenhar-sehia infallivelmente antes de lá chegar. 

Os mesmos habitantes da alta povoação tinham sitios 
que só a um e um podiam transpor. 

O desespero da defeza levara os machonos fieis a cons- 
truir fortes palissadas em sitios verdadeiramente inacces- 
siveis e em horrendos despenhadeiros, como aquelles em 
que os companheiros de Pelagío immortalisaram o seu 
nome combatendo pela pátria, até que a ultima scentelha 
da vida lhes foi arrancadas por perversos oppressores. 

O monte Mochena ^cercado pelos rios, que banhavam 
seus pés, apresentava a forma d'um papagaio de papel 
com o rabo voltado para o noroeste, rabo que o rio Ucue- 
la prolongava até se lançar no Changani. 

De roda d'este monte, uma vasta planicie, fértil e ubér- 
rima, completava a defeza doeste ponto estratégico, por 
ser batida em toda a sua extensão pelo fogo de Conji. 

O Lo-Bengula depois de gastar inutilmente mezes em 
cercar a desthronada rainha, e vêr todos os dias parte 
dos seus melhores guerreiros fora do combate, desistiu da 
empreza e mandou parlamontarios a pedir um accordo, ou 
como diriam os inglezes — um modiis vivendi ! ! 

Por elle era estatuído: ^ 

«Que Mangira, a ex-rainha de Machona, conservaria, 
«como único dominio, o seu refugio do monte Mochena, e 
«como vassallos e súbditos as pessoas que a acompanha- 
«vam á data d' este accordo. 

«Que poderia cultivar em volta do seu monte o terreno 
«de que exclusivamente carecesse para sustento dos seus. 

«Que os gados poderiam pastar até uma légua de dis- 
«tancia. 



«Qqq lhe seria, facultada a perroissilto ãe hastear aban- 
«deira portugueza, ou a que qulzesse, á porta da cubata. 

aQue couaervaría a sua artilheria coustanle quatro 
«peças de ferro de calibre três que a espedição de Diogo 
<Sim<1es Madeira em 1607 ali deixara com alguns portu- 
iguezee seus companheiros. 

oQue ficaria de posse daa armas, mumcBes e de tndoa 
toa petrechos do guerra exiatentea no Conji. 

«Que 3. ex-raioha de Machona não atacaria já maia 08 
■ matcbeles e reconheceria o Lo-Bengula como seu senhor, 
lie nunca procuraria hostilisar este, e antea sim lhe pres- 
itaria todo o auxilio.» 

A pobre da rainha dispunha-so a acceitar estas clauea- 
laa humilbantea e despóticas, porque dos emisaarioa que 
tinha mandado aos portuguezes de Manica e Zumbo, pe- 
dindo-lhes auxilio, oito havia a menor noticia, e a rainha e 
03 BQua já começavam a sentir oa horrores da fome. 

Estavam as couaas u'eate pé quando a expodição do 
major chegou ás margens do Save, a oeste da Massikesse, 
onde encontrou os doie enviados. 

O major resolveu aproveitar este favorável ensejo, que 
lhe proporcionava occaaiSo de ter por alliada a antiga e 
poderosa rainha; mas não desejava hostíliaar o rei dos 
Matebelea. N'este sentido deu inatrueções ao capitão Al- 
fredo Estreita, que partiu immediatamente com cento e 
vinte homens, dez camelos e doia canhBea-revoIvers. 

O capitilo tinha como sou immediato o tenente Alberto 
Carlos de Saldanha. 

Em oito dias transpoz a pequena espcdiç^ a distancia 
do Save ao monte Mochena, seguindo por caminhos co- 
nhecidos doa guias, e nSo descançando aenílo o tempo ri- 
gorosamente ncccusario para refazer as forças perdidas. 



EM AFRICA 57 

Do alto da penedia onde estava a rainha foi avistada, 
com verdadeiro jubilo a gente de Alfredo Estrella, guiada 
pelos emissários Chande e Checapoto. 

De entre aquellas figuras negras, esquálidas e descarna- 
das, que com os olhos esgazeados seguiam os movimentos 
da expedição, destacava-se a pouca distancia, melancholi- 
camente assentada no extremo da eriçada penedia suspen- 
sa sobre o abysmo, uma joven branca e formosa. 

Era Magelina, a gentil filha da rainha de Conji e Ma- 
chona. 

A tez baça e aveladada fazia snbresahir o nacarado da 
sua pequenina boca. 

Todo o conjuncto das airosas formas tornavam Mageli- 
na uma encantadora divindade. 

Os cabellos, posto que um pouco ondeados, cobriam-lhe 
os bem torneados hombros, e eram tao fartos e abundan- 
tes, que os negros a chrismaram de — Simba, * — compa- 
rando-a ao rei das florestas; 

Havia muito tempo que a princeza Magelina estava im- 
movel fixando um ponto negro que avançava no hori- 
sonte. 

Os seus grandes olhos, que pareciam estar também fi- 
xos na penumbra dos seus negros e tristes pelisamentos 
do porvir, desfitaram>se por fim da terra e das regiSes do 
desconhecido, e scintillando como dois relâmpagos, refle- 
ctiam a commoção d'alegria que de repente lhe illuminou 
a alma. 

Acabara de ver distinctamente a expedição transpor o 
rio, e na sua frente o vulto esbelto e gentil do tenente 
Alberto Carlos. 

1 Leoa. 



68 PORTUGUEZES E INGLEZES 



■.^.'^ 



D'um pulo Magelina desceu do alto penhasco, suspenso 
no espaço, e correu á senzala real. 

— Mâe, disse ella, os meus olhos cançados de fitar esse 
immenso deserto em torno do npsso ultimo refugio, e de 
nada verem, viram por fim. 

cOs brancos, nossos irmãos, ouviram os teus e os meus 
rogos. 

«Chande e Checapoto acabam de transpor o rio Inco- 



', cuesi. 



aOs matebeles, nossos inimigos, tiveram medo ; deixa- 
ram-os passar. 

«Mãe, prepara-te para bem receber os nossos liberta- 
dores. 

Magelina não esperou pela resposta de sua mãe; foi ao 
quarto que occupava na senzala fazer a sua melhor toUette, 

Constava ella d'umas grossas manilhas 3e ouro na per- 
na esquerda, signal da sua virgindade, e muitos collares 
de contaria encarnada, que lhe cobriam os hombros e par- 
te do bem torneado seio. 

Um panno feito da fimbria da palmeira, tapava lhe o 
corpo desde a cintura até meio da perna, semeIhando<a 
ás dançarinas d'opera. 

Um pente d'ouro cravejado dos mais finos diamantes 
das suas minas, lhe segurava os abundantes cabellos. 

Completava este ligeiro costume uma espécie de man- 
to solto á mercê do vento pelas costas abaixo. 

Não se podo descrever o encanto d'esta esbelta figura 
de mulher assim vestida, ficando b^m patente os bellos 
contornos, que dezesete primaveras beijaram com o seu 
rocio salutar e odorífero. 

Á rainha foi vestir fato idêntico, pondo somente manilhas 
em ambas as pernas, em signal de já ser mãe, e coUocan- 



£M AFRICA m 

do na cabeça uma coroa de ouro cravejada de diamantes, 
muito semelhante na forma á coroa portugueza do tempo 
de D. JoZo m. 

Ob diamantes que a rainha e sua filha únda possuíam, 
valiam milhSes, e estas millionarios iam receber os seus 
hospedes n'uma miserável cabana feita de barro e capim, 
nSo tendo por outra cama, senSo as folhas das florestas ; 
por mobilia, uns toscos troncos de annoso lenho ; por co- 
mida, uns parcos bagos de milho cosido; e por bebida, a 
agua do rio I ! 

Comtudo, para r^alar os seus hospedes, Mangira deu 
ordem para serem mortas as ultimas cabeças de gado, que 
ainda restavam das razzias dos matebeles. 

Entretanto os homens de Alfredo Estrella tinham subi- 
do o alteroso rochedo Mochena sem opposição da gente 
do Lo-Bengula, e chegavam ao plan'alto, onde estava edi- 
ficada a senzala real. 

O commandante formou a expedição em frente da sen- 
zala e segundo o costume d'aquella8 paragens, deu sete 
descargas de pólvora Becca, em honra da rainha e da ban- 
deira que tremulava no alto da aringa. 

Os guerreiros de Mangira atroaram os ares com gritos 
estridentes de guerra e de satisfação, e fazendo os costu- 
mados esgares deante dos dois officiaes, dispararam tam- 
bém as suas compridas espingardas de silex, retribuindo 
assim cortezia com cortezia. 

Acto continuo foram os dois chefes recebidos pela rai- 
nha, princeza e corte, 

A rainha que fiillava um tanto o portuguez, língua que 
tinha sido conservada por seus pães, desde Monga Tam- 
ba Machona, agradeceu com palavras tocantes o auxilio 
dos brancos. 



^ PORTUGUEZES E INGLEZES , 

Alfredo Estrella n'am pequeno discurso disse-lhoi entre 
outras cousas, que elle e os cento e vinte homens que o 
acompanhavam, eram apenas a guarda avançada que o 
poderoso rei de Portugal mandava áquellas terrasi afim de 
explorar as minas que pelo Monomotapá tinham sido da- 
das a El-Rei, e para coUocar a rainha Mangira na posse 
do seu reino, tão vilmente esbulhada d'elle pelos ferozes 
Matebeles. 

Que a quatro jorqadas vinham uns três mil guerreiros 
armados com umas espingardas, que matavam o ininíigo 
á distancia aonde costumam andar as águias, que mal se 
vêem nos céus. 

Que possuía umas peças d'artilheria com muitos canos, 
bastando ellas somente para matar todos os Matebeles que 
se oppozessem á vontade do rei de Portugal. 

Que traziam quarenta camelos carregados de muitas 
cousas para a expedição e de muitas outras para os povos 
da poderosa rainha de Machona, e como amostra doestes 
presentes offereceu-lhe um ariston que fez tocar por um 
dos seus, o que deveras encantou a corte. 

Á formosa princeza foi presenteada pelo commandante 
com um lindo cestinho de filagrana de prata, contendo 
agulhas, dedal, thesoura e carrinhos de linha. 

Porém a bella 8imha, apesar de agradecer delicadamente 
a amabilidade do capitão, não tinha ficado satisfeita, e não 
desfitando o tenente Alberto Carlos, parecia, na lingua- 
gem muda dos seus formosos olhos, pedir-lhe também al- 
guma cousa. 

Aquelle, desde que viu a encantadora princesa, esque- 
ceu todas as fadigas da penosa jornada, todos os perigos 
por que tinha passado e aquelles que o futuro lhe reser- 
varia, e o coração até ali frio e insensivel, bateu apressado 



EM AFRICA 61 

em presença ^'aquella deidade do sertSo filha da rainha 
de Conji e Machona. 

Mergulhado em 'mil pensamentos desencontrados, qnasi 
qae não deu pela scena da recepção real, e só via a 
mulher bella, esbelta e fascinadorà, que no meio d'aquel- 
les negros ali apparecia extraordinariamente a attrail-o e 
a dominal-o, com o effliuvio dos seus olhares nagneticos. 

Alfredo Estrella pratico e positivo em todas as suas cou- 
sas, não se prendeu nem se preoccupou com o mysterio 
de encontrar uma formosa branca ao lado da rainha de 
Conji e Machona, e o que mais era, sua presumptiva her- 
deira da coroa. 

4leservou-se para mais tarde encontrar a chave d'aquelle 
enigma, e depois de dar um pequeno presente á corte da 
rainha, terminou a audiência e foi escolher o sitio para o 
acampamento dos seus. 

Ao despedir-se de Magelina, Alberto Carlos tirou da al- 
gibeira do seu dólman, de junto ao coração, uma peque- 
nina carteira onde tinha o seu retrato e um lindo espelhi- 
nho de fino cristal, e com um amável sorriso offereceu-a 
á princeza. 

Com grande surpreza sua, a joven agradeceu-lhe esta 
galanteria n'um portuguez muito carrecto, e beijou o re- 
trato ali mesmo, com a maior franqueza. 

Findara a apresentação. 

Os expedicionários estavam em sua casa, segundo a 
vontade e o dizer da rainha. 

Cada um foi tratar d'executar as ordens dos chefes. 

Alberto Carlos ficou encarregado de pôr em bateria os 
dois canhões rewolvers Kotchiss e de estabelecer o servi- 
ço de segurança, que seria composto de indígenas e expe- 
dicionários. 



62 PORTUGUEZES E INGLEZES 

Era já noute quando fícou concluído o acampamento e 
que os dois chefes poderam recolher á sua barraca. 

Alberto Carlos todo poesia, alma e coração, a custo con- 
ciliou o somno pensando n^aquella mulher extraordinária 
e deslumbrante, ideal, phantastica e divina, que semelhan- 
te a uma visSo do céu, baixara á terra para o fascinar, 
prender e amar ! 



VI 



o LO-BEilGDLA-REI DOS HiTEBELES 



• - 



A historia dos reinos d'Africa Dão se pôde reconstruir 
clara, nitida e verdadeira, como a da Europa. 

Os escriptos mais antigos, — que chegaram aos nossos 
dias — de Ptolomeu, JoSo de Barros, Duarte Lopes ou Pi- 
gafetta, P. Luiz Marianno, Cardonega, P. João dos Santos, 
P. de Verbies, Davity, Gamito e outros ; as cartas de Ber- 
tius, Kezende, Linschoten, Hondias, Kiepert, Juan de la 
Costa, Eamuno, Mercator, Castaldi, Sanuto, Nicolas Picart 
Sanson, Ortelius, Dapper e muitos mais, não estão d'ac- 
cordo entre si. 

Com estes dados, divergentes com aquelles que a tradic- 
ção tem trazido até nós, e com os importantes trabalhos 
desde Mungo Park até Speko, Burton, Grant, Barth, Bru- 
ce, Krump, Lamg, Livingstou, Cameron, Denham, Cla- 
pertton, Caillé, Vogel, Stanley, Compiegne, Brazza, Dr. 
Lacerda Monteiro e Gamito, Honorato da Costa, J. Coim- 
bra, Rodrigues Graça, Montanha e Teixeira, Silva Porto, 
Paiva de Andrada, Henrique de Carvalho, Sesinando Mar- 



64 P0RTUGUEZE8 E INGLEZES 

quês, Cardoso, Serpa Pinto e Capello e Ivens, tentam og 
geographos modernos fazer a exacta cartographia africana. 

Consultando porém uns e outros exploradores estragei- 
ros, vê-se claramente que cada um d^elles quer arrogar a 
si a prioridade de ter pisado este ou aquelle sitio, de ter 
navegado este ou aquelle rio e de ter contemplado este 
ou aquelle lago. 

Mas do que não resta duvida alguma, é que, antes de 
Aflfonso Gonçalves, Pedro de Gintra, João d'Ázambuja, 
Pêro d'Evora, Vasco da Gama, Luiz d' Albuquerque, Bar- 
tholomeU Dias e muitos outros notáveis e arrojados por- 
tuguezes, nenhum inglez, francez, allemâo ou hollandeZ| 
tinha passado alem do Cabo Não, dobrado o Cabo da Boa 
Esperança, ou pisado um palmo de terra da Africa equa- 
torial ! 

Que antes de Livingstone, Stanley, Brazza e Cameron 
nos fallarem do centro da Africa, dos seus lagos, rios, flo- 
restas e montanhas, já em 1491 os dominicanos, os ca- 
puchinhos, os agostinhos e vários missionários seculares 
portuguezes, conduzidos á Africa occidental np. frota de 
Buy de Souza, e secundados nos seus esforços por outros 
missionários enviados do reino em 1493, 1645, 1649 e 16Õ5, 
edificaram hospicios, coUegios, conventos, templos espaço- 
SOS e pequenas ermidas em S. Salvador do Congo, Loanda, 
Bengo, liamba, Massangano, Malua, Golungo Alto, Cahenda 
e em muitos outros pontos do interior. 

O que ninguém pode contestar é que em 1560 o padre 
Silveira, tendo ido de Moçambique ao Zimbaoé^ capital de 
Monomotapá, foi ahi cobardemente assassinado por intri- 
gas dos árabes negociantes d'escravos ! , 

Qtíe, em 1520, mandou D. João 11 uma expedição á 
Abyssinia, á corte do lendário Prestes João, e que d'essa 



viagem existe o relatório feito pelo capollSo Francisco Al- 
vares, com maitas e iotereesaates noticias de terras per- 
corridas 1 

Que, em 1540, oa miasionarioa dom!nicatioB P. Luiz do 

Kspirito Santo e F. Luiz àa Trindade, em ííena, capital do 

reino de Inhamior, foram horrÍTelmente martyrísadoa, sendo 

o ultimo d'GBteâ apóstolos da fé e da civilisaçílo lançado do 

alto d'uina elevada montanha para um profundo precipicio ! 

Que, já em em 1561, uma colónia do oitenta portugue- 

zes, tendo á sua frente o celebre Cayado, estava estabele- 

ctcla em Lunda, e commeroiava a muitas loguaa no interior t 

Que, em 1578, Duarte Lopes percorreu o Congo e in- 

nou-se por diversos paizes, d'onde colheu informaçOea 

) curiosas, até alii completamente desconhecidas, que o 

I Filippe Pigafetta, conhecendo o grande valor e al- 

rge d'ellaa para a sciencia e para a geographta, escre- 

I em 1591, segundo as palavras de Lopes, um livro cm 

fliano cora o titulo — Rdai^ão do reino do Congo — livro 

ft^iití se fizeram varias tradueçSes em inglez, latim, al- 

jnSo, hollandez, etc. 

tQue, era 1582, os Mozimbea, perto do famoso lago Ma- 

-Nlianja Muero, Nhanja Grande de Sebastião Xa- 

r Coelho, João dos Santos s Manuel Glodinho, ou o mo- 

fpo IlyasBa dos exploradores contemporâneos ■ — , amar- 

a ama arvore o padre Nicolau do Rosário, crivaram- 

I de flechas, eBquartejaram-n'o, asBaram-n'o e. . . devo 

n'o1 

I em 1677, José da Rosa tentou ir de BengueJIa a 
ipa por terra, o que não poude levar a effeito : mas que 
3 JoXo Baptista e António José realiaaram em 1815, 
> de Loanda a Moçambique pelo Quanza, e terras dos 
Úuaa, regressando á costa occidental no tim de sete 



66 PORTUGUEZES E INGLEZES 

annos, com cartas do governador de Moçambique. 

Que, em 1807, o coronel Honorato da Costa abriu uma 
communicaçSo entre Loanda e os Maluas ! 

Que, antes de Livingston muitos annos, já José d^Ássum- 
pção e Mello tinha dito ser o Secheké e o Liambai ape- 
nas o curso do Zambeze. 

Que, como muito bem diz o sr. Manuel Ferreira Ribei- 
ro, nas suas vias commerciaea portugnszas em toda a Africa 
cetral nos séculos 16.^ e 17.^ : 

«Toda a Africa central foi descoberta e percorrida pe- 
los portuguezes do século XVI. Á expoloração comm^rcial, 
pratica, effectiva, que os portuguezes sustentaram por to- 
da a África trópico equatorial era tâo persistente, desen- 
volvida e fecunda, que sabia tanto de todos os sertSes, la « 
gos, rios e florestas, como hoje. Livingstone, Gameron e 
Stanley aproveitaram-se das informações dos portuguezes, 
da sua linguagem e das suas memorias, para realisarem as 
suas viagens e fazerem as suas explorações com mais se- 
gurança eiacilidade do que se alli fossem sem esse pode- 
roso auxilio.» 

Os trabalhos de Ptolomeu, e mesmo os do Mungo Park, 
perdem se na antiguidade dos tempos, e se nâo se pode pôr 
em duvida que estes sábios tinham algumas noções da Africa 
central e da do Sul, é certo que algumas d^essas noções 
chegaram até nós tão nebulosas, que d'ellas só um fraco 
vislumbre de luz pôde sair. 

Tudo é maie ou menos vago e confuso. 

Os mappas d' André Bianco e de Còronelli, comparados 
com 08 modernos, accusam erros monstruosos. 

Povoações, que uns coUocam n'um determinado grau do 
longitude e de latitude, apresentam-n'as outros a mais de 
vinte léguas. 



EM AFRICA 67 

Os nomes de rios, de lagos^ d^aldeias de grande ou pe- 
quena importância, de serras, de reinos ou d'imperios, é 
raro terem a mesma orthographia. 

È, comtudo, apesar doesta grande divergência, quasi to- 
dos os escriptores e cartographos ou fallaram a verdade, ou 
muito d'ella se approximaram ! 

E que a maior parte das cidades, das aldeias e dos rei- 
nos doiinterior d' Africa, sSo como as miragens, são c^mo 
as dunas movediças do Sahará que o simoun muda a cada 
momento 1 ^ ^ 

Teem a vida ephemera das flores. 

As guerras dos naturaes, as razzias dos árabes para o 
trafico da escravatura, o crescimento d' um lago, um rio 
que transborda e segue nova direcção, muda n'um mo- 
mento a chorographia d'aquelle logar. 

A aldeia de Ma-Zombé, por exemplo, nas margens do 
Tanganika, a florescente e rica povoação de Kíuesa na mes- 
ma região, que o viajante em 1870 marQou em sua carteira 
a taKvtos grãos, já não seriam hoje encontradas pelo explo- 
rador consciente que os procurasse. 

Uma tinha sido arrazada e engulida pelo seu tenebroso 
lago, a outra tinha sido incendiada, saqueada e destruída 
* pelos Buga-Buga ! 

£ se o viajante voltasse mezes depois pelas mesmas pe- 
gadas, procuraria inutilmente os pontos exactos em que as 
suas observações tinham marcado uma ou outra aldeia. 

Os vestigios d'ellas desappareceram, para darem logar á 
mais luxuriante vegetação, ou ás ondas encrespadas, que 
iam lambendo as margens do lago ! 

Tudo n'estas regiões immensas e mysteriosas é collossal, 
extraordinário, maravilhoso e phenomenal ! 

A pronuncia d'uns e outros, e a variedade dos dalectos 



68 P0RTUGUEZE8 E INGLEZES 

africanos, não tem concorrido menos para que um mesmo 
logar nos appareça designado por nomes bem differentes. 

Descrever portanto os ascendentes do Lo-Bengula, co- 
mo ellj se encontra hoje senhor do grande paiz queoccupa, 
outr'ora império do Monomotapá, onde se passa a nossa his^ 
toria, e fazer descripção exacta doesta parte d'África, éem- 
preza coliossal com que não queremos, nem podemos arcar. 

Com tudo procuramos approximar nos o mais possivel 
da verdade, e com os dados que reunimos, e até onde o 
romance pode ir, diremos que o Lo-Bengula, ou os seus 
ascendentes, seguiram as phases phantasmagoricas que se- 
guem os potentados negros e os reinos africanos. 

Poderosos e florescentes hoje, perseguidos, derrotados e 
anniquillados amanhã. 

Parte do reino dos matebeles pertencia ao poderoso im- 
perador de Monomotapá. 

O seu império que até ao meiado do século passado era 
um dos mais ricos e florescentes, cheio de vida e esplen- 
dor, comprehendendo os reinos ou districtos de Chingami- 
ra, Madanda, Quissanga, Quiteve^ Sofala, Manica, Zum- 
bo, Mashona, Chicanga, Biri, Macaracote, Macomé, Vum- 
ba, Motava, Sono, Inhabane, Chipururo, Mucumba, Chu- 
cumanbar etc. etc, tinha por limites o Zambeze ao norte, 
o oceano indico a leste, e o sertão ao sul e oeste. 

Immensidade vaga, indefinida e indeterminada como in- 
certo e Uiimitadoera o poder do imperador; — também teve 
o seu declinar ! 

Tão vasto era este império, e tão difficeis as communi- 
caçSes, que ora um ou outro régulo, macota ou soba, se 
insurgia contra o poder central e se tornava independente. 

A's vezes as ^t^erro^ faziam-se ao mesmo tempo no orien- 
te, no sul e no occidente ! 



EM APEICA 69 

Foi no declinar doeste grande potentado africano, em 
1607, que oa portaguezes lhe prestaram assignalados ser- 
viços *. 

InfeBzmente para elle e para nós, o nosso poder assom- 
broso, também se inclinava para o nadir ! 

Obedecia á lei fatal da existência das cousas humanas. 

Os ascendentes do Lo-Bengula seguiram a corrente cau- 
dalosa dos acontecimentos, assim como os seus descenden- 
tes hSo de naufragar e succnmbir nos escolhos do tempo. 

Mosélé-Katzé invadiu o Transwaal, subjugando e domi- 
nando os Bechnanas, e, sendo batido pelos Boers, caminhou 
para o norte em direcção ao Zambeze, e em nome do di- 
reito do mais forte apoderou-se dos despojos do Monomo- 
tapá. 

Os inglezes amanhS, om nome da civilisaçâo e da rainha, 
tomarSo posse d'este rico território, e, saqueando as minas 
d'oiro, violando as mulheres matebeles, levando tudo a ferro 
e a fogo, acabarão com esta raça, ou a expulsarão para 
ama região pobre e árida, onde a fome e a miséria, com 
todos os seus horrores, a exterminará de vez I 

E, ao Mitigo império de Monomotapá, ao moderno paiz 
dos Matebeles, acrescentarão um land^ que, como garga- 
lheira de ferro, cingirá todos aquelles estados, novas péro- 
las para engastar na pesada e sangrenta coroa da rainha ! 

O Lo-Bengula, descendente do Mosélé Katzé, ou Muzi- 
licatezi, na época em que se passa a nossa historia, era 
nm homem de pouco mais de quarenta annos. Tinha todos 
08. defeitos e todas as virtudes dos poderosos autocratas do 
oontinente negro. No seu tempo de rapaz fSra um guer- 
reiro destemido, terrivel, audaz e arrojado até á temeridade. 



1 Vide nota n.« 1 e 2. 

5 



70 PORTUGUEZES E INGLEZES 

Vivia no sea palácio de Qabulavaio, ou Qabuluvaio edi- 
ficado no alto monte Matoho, n^uma altitude de mil seis- 
centos e trinta metros, disfructando d'ali uma vista encan- 
tadora, que se espraia até ao horisonte, ficando ainda muito, 
para além doeste os limites do seu reino, que ao norte tem 
o Zambeze e o Sanhate, ao sul o Bembe, a este os territó- 
rios portuguezes de Sofala, Manica, Machona, Zumbo, e 
ao oeste o Zonga, abrangendo uma ária de mais de dois 
mil e seiscentos kilometros quadrados, ou quinhentas e vinte 
e oito léguas I 

O seu formoso e vasto paiz é cortado por um grupo ex- 
tenso e variado na forma, de altas e magestosas montanhas 
de rochas schistosas da mais antiga formação de gneiss, 
constituídas pelo feldspatho, mica e quartzo, ou eruptivas 
formadas de granito^ porphiros, basaltos e lavas, com 
as variadas cores vermelhas, verdes, rosa, pardas, ne- 
gras, azucs escuras ou brancas, que desde a margem do 
Zambeze caminham para S. O. tornando muito salubres 
e bellas as vastas regiões que atravessam. 

Innumeros rios, como o Sengue, o Usme ou Umai, o 
Umniati, o Uanzuezi, o Sebaque, o Changani, o Ubibi, o 
Bembesi ou Im-Penbis, o Incocuesi, o Maebae ou Tuli, o 
Smoqué, o Chachá e muitos outros fertilisam os seus cam- 
pos, onde o bao-bab e a mimosa attipgem uma altura colos- 
sal e um desenvolvimento prodigioso, de mistura com a 
acácia, a arvore do pão, o algodoeiro de toda a espécie, 
a bananeira, a laranjeira, o cinamomo, o ricino, o sycomo- 
ro, o tamarindo, o myombo, a figueira, a macamba, a ma- 
langa, muitas gommosas, euphorbias e palmeiras, que em 
diversos sities formam vastas e espessas florestas. 

O sub-solo dos seus extensos dominios encerra riquezas 
sem nome. 




Ab minaa de ferro, de prata, d'ouro e diamantes sSo tan- 
tas que bastariam só ellaa para abastecer todoa ob merca- 
dos luúnâtarios do mundo I 

Os seus súbditos, qiio são calculados em duzentos mil, 
ubedccem-lhe cegamente. 

Eate poderoso rei, qus deveria^ser um dos mais ríeos e 
opulentos senhores da terra, disfruútando todoa os confor- 
tos da civiliaaçílo e do progresso, vivia n'uma cubata de 
madeira baptisada com e pompnso nome de palácio á ouro- 
pêa, o OB seus vassalloa habitavam mesquinhas e immun- 
das cubatas de colmo e capim, de fúrma circular como as 
dos zuloB, de quem descendem. 

E, omnipotente senhor e miseravoia escravos, poaauido- 
rea de incalculáveis riquezas, andavam quasí nús, descai- 
çoB, famintoa, e viviam uma vida cheia de privaçSea ! 

Da passagem e da estada dos portuguezes no seu paiz, 
somente apronderara o cultivo do algodão, que noa territó- 
rios de Machona occupa uma superfície de maia de cincocnta 
mil metros quadrados, c a forma de o tecerem, assim como 
a de trabalharem o ferro, de que fazem os aeua instrumentos 
agrícolas e aa suaa armas de guerra. 

Os primitivos habitantes eram os amackolis, que foram 
eacraviaados pelos zuloa, quando invadiram o paiz, occu- 
pando ainda boje um logar inferior n'aqiiGlla sociedade. 

A aristocracia debaixo do nome de ahazanzis, descen- 
dente dos znlos, é a raça dominante, tendo também a sua 
classe de burguezia conatituida peloa abentlas, da raça doa 
bctjuwuiíi, que vivem do commercio, e nKo compartilham 
das honrarias doa ahazaims. 

O exercito do Lo-Bengula é formado por quinze mil ho- 
mens, armadoa de differentes formas, desde a azagaia, a 
lança, o arco c a ãeoha, até á comprida lazarina árabe. 



72 PORTUGUEZES E INGLEZES 

Estes quinze mil homens sâo destros e peritos no exercí- 
cio da guerra, segundo a ordenança do paiz ; e nSo se oc* 
cupam n^outro mister, quo nao seja o das armas. 

A's mulheres pertence o cultivo dos campos. 

O palácio do Lo-Bengula é de madeira, construído mais 
ou menos á europêa, segundo um modelo fornecido por nm 
negociante árabe, e nRo passa d'uma aggIomeraçSo de ca- 
sas mal dispostas e pouco guarnecidas. 

A cidade de Gubulavaío edificada no alto monte Matoho 
ou Gubulavaío, é formada de cabanas cónicas dispostas em 
ruas e largos circulares, tendo um nnico compartimento 
com uma só porta, onde vive a família toda de cada indí- 
gena. 

Os secálos e macotas, fidalgos da corte do Lo- Bengala 
habitam, alguns, nas suas senzalas ou aldeias, em cabanas 
mais confortáveis ; mas, a não ser o uso immoderado que 
fazem do pombéy da capata e da aguardente, em cousa al- 
guma 03 seus hábitos e viver são difFerentes dos que sSo 
peculiares aos outros pretos seus inferiores. 

O Lo-Bengula, como todos os grandes potentados da 
Africa central, tinha bastante convívio com os árabes de Zan- 
zibar c das regiões dos Lagos, com quem negociava escravos, 
marfim e ouro, permutando-os por armas, pannos e outros 
artigos. 

D'este convívio, e com o d'alguns portuguezes residen- 
tes no Batonga, Bazizulu, Burroros, Machona, Gaza e oti- 
tros pontos limitrophes, tinha adquirido uma certa instruc- 
ção, de que muito abusava a seu favor. 

Reconhecendo a sua superioridade moral, tornava- se, nos 
momentos de mau humor, um verdadeiro tyranno ! 

Outras vezes, porém, era d'uma clemência, bondade e re- 
ctidão com os seus súbditos, que em todos os seus actos 



EM AFRICA 73 

transparecia a civilisação que illuminava o espírito d'aquelle 
sobarano absoluto. 

Do convívio com a civilisação o liO-Bengula aprendera 
os usos de certos objectos precisos á vida, e o seu palácio 
encerrava coisas de que poucos potentados do interior sabe- 
riam a serventia. 

O Lo-Bengula seguia o polygamia, tendo comtudo uma 
mulher que occupava um logar mais próximo d'elle, sua fa- 
vorita querida, conhecida por primeira mulher, ou rainha; 
mas este pomposo titulo não obstava a que o tyranno lhe 
mandasse cortar a cabeça, se isto lhe aprouvesse. 

Âlém d'esta primeira mulher, o Lo-Bengula tinha tantas, 
quantas queria, sendo nma honra inaudita para as donzellas 
matebeles o perderem a virgindade no harém do sobe- 
rano. 

Tal é o homem e o rei que estava de posse dos vastos 
territórios onde se passa esta historia. 



vn 



MENSAGEM AO L0-BEN6ULA 

O tenente Alberto Carlos e sessenta homens foram ex- 
pedidos em missão ao Lo-Bengula. 

Levavam ricos presentes para este rei, e instrucçSes pa- 
cificas para lhe demonstrar a conveniência de fazer as pa- 
zes com a rainha de Machona, ficando esta de posse do 
seu antigo reino, e para que não se oppozesse ao estabe- 
lecimento da companhia portugueza, é á exploração das 
minas. 

A rainha de Machona forneceu oitenta homens para es- 
colta e guias. 

Quatro barracas Tollet, dois barcos de gutta-percha, um 
canhão revolver e quatro camelos, acompanhavam a mis- 
são. 

No primeiro dia de marcha, Alberto Carlos acampou 
junto á nascente mais oriental do rio Moango, o qual se 
vae lançar no Changani, depois de regar rÍ30s campos de 
milho e arroz. 

No segundo dia chegaram até á ultima nascente sul 



EM AFRICA 75 

dfaqaelle rio, depois de atravessarem com difficuldade três 
riachos que encharcavam o terreno, tornando a marcha 
penosa e incommoda. 

A jornada do terceiro dia foi qnasi toda feita por outei- 
ros pouco elevados, onde a cada passo a pequena caravana 
admirava os mais soberbos exemplares de antilopes, como 
o boi de corcova, o empacassa, o cabrito montez, a paca, o 
veado, e muiios outros, sendo alguns d'elles mortos para 
consumo dos expedicionários. 

N'esse dia foram ficar á aldeia de Picarum, onde o chefe 
08 recebeu muito bem e com amisade, permutando com 
Alberto Carlos os productos do paiz necessários â alimen- 
tação de tojdos. 

D'ali dirigiram-se a Iniati, aldeia importante, onde vão 
convergir as sete estradas que cruzam o paiz dos Matebe- 
les em todas as direcçSes. 

Iniati ficava a meio caminho de Gabalavaio, residência 
do Lo-Bengula, e era muito povoada e cercada de bastan- 
tes aldeias. 

O regulo de Iniati fez a melhor acolhida possivel ao te- 
nente por saber que commandava a missão ao Lo-Bengu- 
la, e por ella se compor de portuguezes, com quem man- 
tinha muitas e boas relações. 

Alberto Cairlos expedki d'ali dez homens na comprnhia 
do filho do regulo d'Iniati, com alguns presentes para o 
Lo-Bengula, annunciando a sua chegada e o fim da mis- 
sSo de que ia encarregado para aquelle poderoso rei. 

Os povos de M'bigo, M'loml>o, Niacania, Babi, Bulana 
e Mtelaba foram a Iniati para trocar ouro e dentes de 
elephante com o tenente Alberto Carlos ; este porem deu 
a todos algumas contas, missanga, fios de latão, espelhos 
pequenos e outras bugigangas, mas nSo quiz acceitar 



76 P0RTUGUEZE8 E INGLEZE8 

objecto algum em troca, porque a missão d'eUe o&o erâ 
de trafico, como explicou aos indígenas. 

Alberto Carlos fez saber a esta gente amiga, que nas 
terras da rainjia de Machona ia ser estabelecida uma po- 
derosa aldeia de brancos, aonde poderiam ir com géneros 
de todas as qualidades, que trocariam por pannos, eiápiogar- 
das, pólvora etc. 

Os emissários que tinham ido ao Lo-Bengula, estavam de 
volta ao fim de dez dias d'auzencia. 

*0 rei tinha-os recebido bem, acceitado os presentes e 
mandado dizer a Alberto Carlos que podia seguir para a 
capital, na qual seria recebido. 

A expedição poz-se em marcha cheia de contentamento 
por ter a certeza de ser bem acolhida pelp rei de tão vas- 
tos domínios. 

As jornadas, como até ali, deviam ser feitas de. madru- 
gada, acampando o resto do dia, abrigados da maior força 
do calor. 

A pequena caravana percorreu a bem trilhada estrada 
que conduz de Iniati a Ghibalavaio, indo acampar na al- 
deia de Niacania. 

A jornada seguinte foi até M'tolaba, um pouco a oeste 
da estrada. 

Tiveram que fazer este pequeno desvio a pedido do 
soheta d^aquella aldeia, que muito desejava ter os portu- 
gueses comsigo. 

O soheta M'talaba era ainda novo, e parecia ter bastante 
inteligência. 

Fez milhares de perguntas ao teneate sobre as cousas 
da europa, e mostrou grandes desejos de abraçar a reli- 
gião christã, de que já tinha algumas luzes pelo convívio 
com gente de Sofala, com quem tinha commerciado. 



EH AFRICA 77 

Este numoebo sympathisou tanto com Alberto Carlos, 
que o acompanhou até á corte de Lo-Bengula, offerecen- 
do-se para cicerone. 

Da aldeia do M'talaba a carabana seguiu até Edibaine, 
por onde a estrada passava pelo meio. 

Por toda a parte a expedição era bem recebida, e os 
indígenas vinham pressurosos trazer ovos, gallinhas, arroz, 
pombé, capata, cabritos, e refrescos que trocavam com fa- 
cilidade por contas, pannos, facas ordinárias, e pequenas 
navalhas, a que davam grande apreço. 

D'um lado e outro da estrada havia formosos campos 
cultivados, abundando o cabuUo, (espécie de feijão), o mas- 
sembala (milho miúdo) e alguns legamos da Europa, que 
debaixo d'aquelle sol vevifícador, attingiam um desenvol- 
vimento enorme. 

Os algodoeiros, os coqueiros, os cafezeiros, juntamente 
com as formosas plantaçSes da canna sacharina, de sor- 
ghos, cajueiros, tamarinheiros e ginguba, davam áquella re- 
giSo um aspecto d'abundancia e bem estar. 

O seguinte acampamento foi já nas abas da serra Ma- 
toho ou Matopo, ao sul da nascente do Im-Pembis, ou 
Bembesi, á sombra d'um formoso palmar, onde a expedi- 
ção se refrescou com o saboroso vinho da palmeira. . 

Nem uma única doença se manifestara. 

Ao cuidado na escolha dos acampamentos, á abundân- 
cia de boa comida, ás cabanas construidas com toda a at- 
tenção, ao saneamento, e á rigorosa observância dos pre- 
ceitos hygienicos, nos quaes o tenente Alberto Carlos era 
bastante escrupuloso, deviam todos o gosarem de excel- 
lente saúde, e terem uma bella apparencia. 

O ultimo acampamento teve lugar em Chilo, a três lé- 
guas da capitaL Ali recebeu o tenente Alberto Carlos um 



78 PORTUGUEZES E INGLEZES 

enviado de Lo-Bengula para o coúdnzir a Qtibalavaio á 
habitação que lhe estava destinada e aos homens que o 
acompanhavau). 

Do Chilo á capital era ama das marchas mais fatigan- 
tes, atravez de elevada serra, onde a arborisação gigantea 
como o bao-bab ia a pouco e pouco desapparecendo para 
dar logar ás rasteiras espinhosas e aos variados e rachiti- 
cos fetos. 

Gubulavaio edificada no alto do monte d9 mesmo no- 
me, a uma altitude de 1:628 metros, destacavá-se d'eiitre 
o azul dos céus, com toda a belleza dos tons escuros e 
phantasticos, sendo avistada a grande distancia. 

N'um largo pía^eot^ foram construidas centenares de cuba- 
tas á maneira das dos zulos. 

No centro erguia-se um elegante palácio de madeira e 
colmo, de construcção europêa, com vastas salas e espa- 
çosos pateos ; era a residência do poderoso rei dos Mate- 
beles. 

A cidade era guarnecida e defendida por duas altas e 
bem construidas tranqueiras de grossos ramos de bambu, 
qui tanga e jacarandá, entrelaçados por forma tal que, 
os le5es, os tigres, as hyenas, os leopardos e outros pode- 
rosos animaes da fauna africana, nâo poderiam, com faci- 
lidade, surprehender os seus habitantes. 

Estas tranqueiras serviam também para a defeza de 
qualquer inimigo que ousasse atacar o poderoso exercito 
do Lo-Bengnla, composto de quinze mil homens dos mais 
aguerridos filhos d' Africa. 

Mas nenhum dos visinhos nutria essa pstulta pretensão, 
porque o exercito do Lo-Bengula, além de estar armado 
d'arcos, flechas, e azagaias, que os intrépidos guerreiros 
manejavam com grande destreza, tinham a invencivelguar- 



EM AFRICA 79 

da do rei, composta de mil homens, armados com compri- 
das lazarínas (*) fornecidas pelos árabes em troca dos pri- 
sioneiros de gaerra, armas que, espalhavam a morte a mais 
de tresentos metros ; distancia a qne as setas dos contrá- 
rios, nSo cansavam o menor damno. 

Além doestas guerreiros tinha o Lo-Bengula a' guarda 
de ccrpoj composta de formosas e feras amazonas, que de- 
fendiam o seu senhor, até á morte. 

Uma larga avenida, dava entrada na primeira tranquei- 
ra e conduzia ao palácio. 

IVum lado e d'outro estavam postadas filas de soldados 
do Lo-Bengula. 

Uma musica infernal de piianos e tambores rompeu á 
chegada da expedição. 

Alberto Carlos fez toda a diligencia para marchar na 
melhor ordem pelo meio dos indigenas. 

O primeiro ministro acompanhado de muitos pagens veiu 
ao caminho receber o enviado do rei de Portugal. 

O Lo-Bengula mandava-lhe as boas-vindas. 

A expedição foi alojada a oeste do palácio, em asseadas 
cubatas semelhantes ás dos zulos. 

O tenente armou as barracas ToUet para elle e para os 
brancos, e só. aproveitou as cubatas para os pretos. 

O rei mandou-lhe um boi, alguns carneiros e diversos 
géneros d'alimento. 

Todos estes presentes foram feitos com a maior bizar- 
ria e delicadeza. 

A's seis horas da tarde d'aquelle dia o Lo-Bengula e a 
corte receberia o ienente Alberto Carlos. 



(1) Armas de silex de cano muito comprido, usadas pelos árabes 
caçadores d^escravos. 



80 P^ORTUGUEjaSS E DÍGLEZES 

Este, depois do acampamento estar em boa ordem, aprom- 
ptou-separa a solemne recepção. 

Da maneira como soubesse captivar o rei dependia o 
bom êxito da sua embaixada. 

A's seis horas em ponto Alberto Carlos acompanhado de 
dez homens, todos armados de espingardas Kropatckek| 
vestindo os melhores fatos, dirigiram-se para o palácio. . 

Atraz d^elles ia a peça canhão revolver Kotchiss mon- 
tada no competente reparo, conduzida por seis machonos 
e servida por quatro expedicionários. 

Seguiam-se os camelos ricamente ajaezados, levando os 
presentes para o rei. 

Apoz estes, marcharam em duas fileiras a escolta e os 
carregadores fornecidos pela rainha de Canji e Machon^. 
A melhor ordem reinava na capital. 

D^im lado e outro da estrada que conduzia ao palácio 
formavam alas os matebeles. 

Soldados do Lo-Bengula armados de compridos bastSes 
de bambu, distribuiam bastonadas á direita e á esquerda 
n^aquelles que mais curiosos e desinquietos cortavam a linha. 

Defronte do palácio formava a guarda particular do rei, 
composta dos mancebos filhos e parentes dos chefes. 

Desde a entrada do palácio até ao throno faziam a guar- 
da d'honra as amazonas do LoBengula. 

Era esta guarda composta das mulheres mais formosas 
e dedicadas ao soberano, tendo por elle o culto do fana- 
tismo. 

Alberto Carlos e a escolta de dez homens, entraram no 
palácio. 

Atravessaram duas vastas salas. 

Ao fim da terceira erguia-se um estrado com docel co- 
berto de pelles de tigre. 



EM AFRICA 81 

. O estrado era fbdo atapetado de pelles de le!lo, assim 
como a sala. 

O Lo-Bengala estava assent^ido no throno, cercado dos 
mais altos dignatarios da corte. 

Vestia tanica árabe, d'algodão muito branco e por cima 
d'ella uzava nma jaqueta bordada. 

Na cabeça trazia o fêz de Zanzibar. 

As pernas nuas, os pés calçados com chinelas bordadas 
a ouro. 

A' cinta cingia um bello alfange com os copos craveja- 
dos de diamantes. 

Vê-se claramente por este vestuário que as razzias dos 
árabes haviam por ali mais d'ama vez passado, e que o 
liO-Bengala tinha sabido vender os seus prisioneiros de 
guerra. 

Diversos dentes d'elephante guarneciam as paredes co- 
mo recordação da mocidade do poderoso rei Matebele. 

A' entrada do tenente Alberto Carlos, o Lo-Bengula le- 
vanton-se, o que foi imitado por toda a corte. 

O tenente adeantou-se até próximo ao throno. 

O rei estendeu-lhe a mão, á europeia, e disse-lhe: aseja 
bem vindo o enviado do meu irmão, o rei de Portugal» ! 

Alberto Carlos apertou a mão do Lo-Bengula, e respon- 
deu-lhe: «o meu senhor el-rei de Portugal envia-me ao po- 
deroso rei dos Matebeles com alguns presentes, para vos 
mostrar a sua amisade, e assentar com vossa magestade al- 
gumas cousas tendente ao bem dos povos seus súbditos». 

Os homens que conduziam os presentes, avançaram en- 
tSo. 

Deante da corte estupefacta, e de Lo-Bengula maravi- 
lhado, foram postos os seguintes objectos : dois fardos de 
iasenda, um serviço de prata dourado para chá^ três ta- 



82 PORTUGUEZES E INGLEZES 

petos bordados, representando palácios e outras magnifi- 
cências europeas, um pequeno lustre de mil pingentes de 
vidro com as competentes velas, vinte espelhos pequenos, 
com diversas molduras, um grande harmonium, um talher 
e copo de cbristofle e uma casaca d'archeiro. 

O Lo-Bengula ia perdendo o prumo real á vista de tan- 
tas magnificências^ e como as creanças, não poude passar 
sem mecher em todos os objectos. 

O seu espanto e verdadeira admiração foi quando tocou 
no harmonium e d'elle sahiram sons, nunca ouvidos peloa 
seus reaes tímpanos. 

Desejoso de conhecer tão bonita musica pediu a Alberto 
Carlos que tocasse alguma cousa. 

O tenente chamou um dos homens, natural da Praia da 
Nazareth, tocador eximio d'aquelle instrumento e disse- 
Ihe que pozesse em acção todo o seu variado reportório. 

O rei e a corte riam muito, e applaudiam satisfeitos. 

Mais satisfeito estava Alberto Carlos, por vêr que o seu 
pleito estava vencido d^antemâo, a nlo sobrevir algum caso 
extraordinário e imprevisto. 

O Lo-Bengala desejoso de conversar sem aquelle ceri- 
monial com o tenente portuguez, terminou a recepção e 
marcou o dia seguinte á mesma hora para nova audiên- 
cia. 

O poderoso rei sabiu da sala acompanhado pela corte 
e dirigiu se á porta do palácio, na intenção de nu)strar ao 
tenente algumas evoluções do exercito. 

Porem- apenas chegou á porta e viu o canhão revolver 
Kotchiss pediu logo a Alberto Carlos que lhe explicasse 
para que servia aquUlo! 

O tenente disse-lhe que aquella pequena peça matava a 
quatro kilometros uma enfiada d^homenS) e que com os 



EM AFEICA 83 

seus trinta e dois tiros podia n'um minuto destruir um ba- 
talhão em columna cerrada. 

O Lo-Beogula quiz ver o effeito de tão prodigioso in- 
vento, e ji estava prompto a mandar uns trinta prisionei- 
ros da ultima guerra, para servir d^alvo. 

^0 tenente teve grande difficuldade em o dissuadir de 
tal propósito, é conseguir d'elle que mandasse coUocar na 
encosta do monte fronteiro alguns bois, para a experiência. 

O rei deu ordem para serem amarrados dez bois ás ar- 
vores que estavam no sitio indicado. 

Para entreter o Lo -Bengala, Alberto Carlos mostrou-lhe 
um magnifico revolver Francotte e foi collocar um peque- 
no alvo de papel a duzentos metros, e fez dois tiros. 

O. Lo-Bengula e a corte foram a correr analysar os effei- 
tos das balas ! 

Não acreditavam que uma espingarda tão pequena, co- 
mo elles cUziam, pozesse uma bala tão longe. 

• Ficaram maravilhados quando viram a arvore furada 
pelas balas! 

A' distancia d'uns trinta metros pastavam alguns car- 
neiros, o rei pediu ao tenente que atirasse sobre elles. 

Alberto Carlos apontou a um que estava de frente, a 
bala acertou-lhe no meio da testa ! ! 

O carneiro cahiu morto. 

O espanto dos indigenas^foi grande. 

O Lo-]^ngula também quiz atirar. 

O tenente explicou-lhe como havia de fazer a pontaria, 
e o rei depois de fazer alguns tiros, conseguiu dar no alvo. 

A este progresso d'atirador o monarcha riu muito, e a 
corte riu também ! 

O Lo-Bengula por muito bonitas maneiras mostrou de- 
M)o de poMuir ama arma d^aquellas. 



84 PORTUGUEZES E INGLEZES 

O tenente que nSo qnria por forma alguma perder occa- 
sião d^agradar ao monarcba africano, disse-lhe que lhe &^ 
zia presente d'um oatro revolver mais bonito da que aqael- 
le, e mandou buscar um pequeno revolver nikelado de ta- 
brico bespanhol, e offerecen-oao rei, dizendo-lheseraquelle 
de muito maior valor. 

O Lo-Bengula quiz logo experimental- o, e ficou muito 
contente, por vêr que furava uma taboa a quarenta pas- 
sos. 

Entretanto os bois estavam amarrados no sitio deter- 
minado. 

O tenente mandou carregar o canhão revolver Kotchiss 
com balas explosivas. 

Fez uma rigorosa pontaria. 

Graduou o binóculo de campanha e disse ao Lobengnla 
que olhasse por ali. 

O pobre do rei ia de maravilha em maravilha. 

Quando viu os bois tSo perto de si pelo effeito daa len- 
tes tirou depressa o binóculo dos olhos e virou-ò e revi- 
rou-o de todos os lados. 

Percebendo porem o engano, riu muito, no que tam- 
bém foi acompanhado pela corte. 

Era certo que, quando ria, riam-se todos mesmo sem 
saber de que ! 

Isto também por cá succede com muito boas pessoas. 

O tenente Alberto Carlos pediu attençSo, ddu á mani- 
vela do canhSlo revolver, e os bois iam a um e um caindo 
fulminados ! ! 

Pouco faltou para que os pretos e o rei se não ajoelhas- 
sem deante de tão poderoso branco, que só elle era capaz 
de matar todo o povo Matebele se lhe dessem tempo ! 

O rei determinou que n'aquella noute houvesse um gran- 



* 

s 



EM AFRICA 85 

de batuque (') no acampamento dos brancos, em honra 
d'elle8. 

Os bois mortos pelo tenente deviam ali ser assados e 
comidos. 

O pombé e a capota (J) entrariam na funcçâo com uma 
magnificência verdadeiramente* real. 

O Lo-Bengula presidiria áquelle festim selvagem. 






(*) Dança. 

(2) Bebidas frementadas. 



r.*iv 



vin 



EH 6UBUUYAI0 E DE REGRESSO A CONJI 

O Lo-Bengula foi mostrar a Alberto Carlos a cidade. 

No trajecto o tenente fallou-Ihe da missão que trazia, 
encarecendo as vantagens para os Matabeles de estreita- 
rem relaç5es com os portuguezes. 

Fez y^r ao rei que o território de Machona pertencia 
aos portuguezes pela doação feita em 1607 pelo impera- 
dor Monomotapá. 

Disse-lhe, "que elle Lo-Bengula muito proveito tiraria 
da aproximação d'um centro europeu, onde poderia adqui- 
rir todos os prodnctos da civilisaçâo. 

A eloquência d' Alberto Carlos foi grande, mas o effeito 
do canhâo-revolver, das espingardas Kropatachek e da no- 
ticia dos dois mil europeus assim armados, occupando o 
território de Machona, que lhe podiam matar um a um 
os seus súbditos, sem que estes lhe podessem fazer o me- 
nor damno, foi mais ponderante no animo do rei, do que 
as boas palavras do tenente e dos direitos do rei de Por- 
tugal. 



'^ 



EM AFRICA 87 

O Lo-Bengula ia ouvindo Alberto Carlos sem comtudo 
dar a entender o que pensava. 

Era aquelle o meio de mostrar a soa esperteza ! 

Porém no intimo estava mais que resolvido a consentir 
no estabelecimento dos portugueses no Machona. 

O que tinha elle a perder com isso ? 

Que lhe importava que os portuguezes arrancassem al- 
gum ouro das minas ? 

Papa que lhe servia o ouro a elle? 

Não tinha quem lhe fizesse os artefactos porque alme- 
java^ nem os meios de communicação com a Europa para 
os mandar manufacturar ali. 

Só de longe em longe é que na cidade apparecia algum 
árabe á procura d'escravos e d'o'uro. 

£ que lhe davam estes em troca? 

Pannos, contas, latão e raras espingardas, e, essas mes- 
mas más e velhas ! 

Com o estabelecimento dos portuguezes no Machona 
não succederia isso. 

Os portuguezes são conhecidos no sertão por bons e ge- 
nerosos ; dar-lhe-hiam tudo o que carecesse, e além d'isso 
elle desejava na corte um official portufiniel para ensinar 
os seas sold^ios, e artiata. par» lhe con^ruirem um ver- 
dadeiro palácio de pedra e cal. 

O Lo-Bengula pensando assim ia caminhando com o te- 
nente. 

Chegaram ao acampamento da pequena expedição, o 
rei entrou na barraca d' Alberto Carlos, e depois de ver 
tudo o que ali estava encerrado e de admirar os objectos 
para elle completamente desconhecidos, despediu-se do te- 
nente, e á sabida, com um amável sorriso, disse-lhe : até 
logo, vou pensar. 



88 PORTUGUEZES E INGLEZES 



Grandes bandos d^indigenas se reuniram no terreiro em 
frente do acampamento portuguez. 

Dez fogueiras crepitavam alegres e com ares de festa. 

X) cheiro penetrante da carne assada ao calor das laba- 
redas e inebriava o ambiente e fazia nfiscer o apetite. 

Chegaram os músicos com os tambores de sons "cavos 
e os pifanos estridentes. 

Em roda das fogueiras formavam-se ruidosos circnlos de 
homens^ mulheres e crianças. 

Era uma noite de festa e d'alegria. 

O rei Matebele ia dar um batuque^ em honra do envia 
do do rei de Portugal. 

De repente emmudeceu tudo, aquellas figuras que se 
agitavam á luz tremula dos troncos que ardiam, pararam 
nos seus cabalisticos esgares! 

Os tambores da guarda do rei avançavam para o ter- 
reiro, annunciando a presença do monarcha. 

O poderoso Lo-Bengula assentou-se n'nm throno arm^a- 
do no centro do terreiro. 

A corte agachou-se em volta d'elle. 

Ás dedicad&s amazonas que formavam a guarda d'hoiira 
postaram-se perfiladas militarmente d'um lado e outro do 
estrado. 

Alberto Carlos e a sua guarda de dez homens avançou 
também para o terreiro. 

O rei e toda a corte levantou- se á sua chegada. 

O ar marcial e imponente do chefe portuguez captivou- 
lhe as boas graças de todos. 

O rei estendeu-lhe a mSU>, que o tenente apertou entre 
as suae. 

> Vide — Noticias sobre Moçambique. 



EM AFRICA 89 

N'este momento o Lo-fiengula segredou-lhe ao ouvido : 
— pensei e resolvi ; estaes servido ! 

Alberto Carlos apertou-Ihe mais a mao^ fazendo todo o 
posaivel para não deixar traosparecer a alegria que lhe ia 
u'alma. 

O rei fel-o assentar' a seu lado. 

Ia principiar o festim ! ! 

As musicas romperam n'um charivari d'ensurdecer ; os 
vorazes gubulavaios disputavam 'entre si a fumegante car- 
ne dos bois. 

A capota e o pombé^ corriam á vontade por aquellas 
guelas ressequidas. 

O rei, a corte, a expedição e até o próprio tenente to- 
maram parte no banquete. 

Alberto Carlos entendeu dever n£o ficar atras em bi< 
zarria ao seu real hospedeiro. 

Mandou buscar uma dúzia d'ancoretas de fina aguar- 
dente de canna, e elle mesmo pela sua mão as ofifereceu 
ao Lo-Bengula. 

O poderoso monarcha nunca tinha saboreado bebida tao 
boa. 

Os trinta e dois graus da aguardente eram o mdhor sa- 
bor ^slta o seu real paladar. 

A' corte foi permittido provar do precioso néctar ! ! 

A boa ordem ia-se perdendo a pouco c pouco. 

A troca do sangue entre o monarcha Matebele e o en- 
viado do rei de Portugal devia effectuar-se n'aquella noite. 

cirurgião aproximou- se então ; fez horrorosas caretas, 
deu muitos saltos, e por fim abriu uma pequena incisão no 
braço d' Alberto Carlos e outra no do Lo-Bengula, proce- 
dendo á vaccinação mutua ! ! 

1 Bebidas alcoólicas. 



90 PORTUGUEZES E INGLEZES 

Estava a troca do sangue realisada ! ! 

O rei fez um gesto com a mão ; o seu tambor d'ord€n8 
rufou. 

Silencio profundo se restabeleceu como por encanto. 

Ia faUar o monarcha. 

— Ouvi, disse elle^ d'este momento cm diante o tenente 
Alberto Carlos enviado pelo meu parente, o poderoso rei 
de Portugal, é considerado meu irmão, se algum de yós 
attentar contra a sua pessoa, contra a vida de qualquer 
dos homens da expedição portugueza, ou contra as suas 
fazendas, ser-lhe-ha cortada a cabeça pelo meu executor- 
mór ; o seu corpo lançado ás feras, as suas mulheres e os 
sues filhos vendidos e açoitados publicamente, e os seus 
bens pf^ssarão para a coroa. 

Os olhos do Lo-Bengula injectaram-se de sangue, as 
pupillas dilataram- se e as feições transtornaram-se4he com- 
pletamente ! 

Não parecia o mesmo homem, lhano, presenteiro cale- 
gre, que ha pouco tinha chegado cheio de magestade e 
nobreza. 

Parecia o demónio extreminador do povo africano ! 

Os seus fieis súbditos rojaram-se pelo chão, parecendo 
sentirem o effeito das palavras do rei, e n'um coro uniso- 
no disseram humildemente: ngeté, ngetó, ngeté ! <Ú6, aio ! ! 
o que quer dizer, sim, sim, sim. 

Depois d'isto o banquete continuou. 

A alegria restabeleceu-se, a capata e a aguardente cir- 
cularam de mão em mão. 

Foi permittido ás bellas amazonas tomarem parte na 
festa. 

Iam principiar os batuques ! 

Ia principiar a orgia dos banquetes africanos ! ! 



EM AFEICA 91 



' ^ J^^ V"- •>..'% í^ 'N . -v 'N '>'"'- - -s ■> ^s'^^ -\rv.rv '^ / 



la^principiar para o preto o melhor dos praseres ! 

Um grande circalo se formou em volta do rei e do t6« 
neiíte. 

Os tambores batiam uu^ oompasso monótono e caden- 
ciado. 

Homens, mulheres, creanças e velhos, núbree e plebeus^ 
gritavam, cantavam, disiam verãos e batiam palmas, em- 
penhando se cada um em faaer o maior barulho possí- 
vel. 

N'aquelleB gritos humanos e no som dos instrumentos 
n&e havia a menor harmonia. 

Comtudo, para elles, o batuque tinha tanto mais mere- 
cimento, quanto o barulho o a infemeira fosse d'ensurde- 
cer oa* ouvidos de tympanos bem fortes. 

Do circulo destacou-se entSo uma formosa ai^oasona da 
guarda real. 

Tinha só deseseis annos, mas a largura dos quadris, o 
amplo e saliente seio, as grossas e bem torneadas pernas, 
davam-lhe um parecer de mais idade. 

Esta formosa zula, descendente da raça nobre que 
tinha oceupado aquelle paiz, era o capitão dá guarda do 
rei! 

Vestia um curto saiote d'algodão, e dos hombros des- 
prendia^se-lhe uma espécie de manto escarlate. 

Na cabeça trazia o turbante arabe^ 

Grossas manilhas d^ouro enfeitavam-lbe ambas as per- 
naa e braços. 

Era o este o signal equivalente jblo que na Europa indi- 
ca^ não dever a mulher levar para a cova jlôr de laran- 
geira. 

A virgindade d'ella já tinha pago o tributo ao seu se 
nhor ! 



92 PORTUGUBZES E INGLEZES 



• -* .'■-í ^ ^ ^ /--/■•^•. 



Esta cofiJtòa, gosava das graças do déspota, e por isso 
era respeitada na corte e em todo o pais. 

A mulher avançou para o meio da larga clareira, olbott 
em roda, desprendes o manto^ que entregou a um j^o^dm^ 
e principiou a dança ! 

Os olhares dos que ainda podiam ver, olo se desfitava 
d'aquelle corpo eibelto, que dava mil tregeitos, quid d^el- 
les o mais libidinoso, impudico e obsceno, de propósito a 
provocar a luxuria e a excitar o devasso senhor. 

A bella capitôa depois de eximir tão publicamente as 
graças de mulher libertina, sensual e voluptuosa, teraiiiieu 
08 esgares lascivios por ir dar com o próprio ventre, no 
ventre do primeiro ministro do rei! 1 

A esta chamada, foi o ministro vepetir idêntica dança ! 

O batuque foi-se prolongando até maahS. 
. O Lo-Bengula retirou-se satisfeito para o palácio, e o 
tenente foi desoançar d'um dia tSo cheio d^emoçSes. 

Pelas nove horas da manhã, o tambor -mór da c6rte, es- 
pécie de pregoeiro, chamava os principaes moradores de 
Gubulavaio a um ehauri como se dis em linguagem Vuan- 
guana, — um consdho d! estado^ como por cá se lhe cha- 
maria. 

Aos rufos ordenados e symbolicos do tambor corveram 
de todos os lados para o palácio real, aquelles a quem era 
dado assitrtir a estes altos conselhos. 

N'uma sala das mais vastas da residência do Lo-Bea- 
guia estava reunida a selecta sociedade Matebele. 

O rei expoz com claresa, que os portugueses em giran- 
do força e bem armados, iam estebelecer uma cidade nos 
terrenos de Machona outr^ora cedidos á coroa portugueza 
pelo imperador Monomotapá. 



EM AFRICA 93 

Qu6'«ste8 terrenos enun ai^uelles que a rainha Mangíra 
oocupou antes da ultima guerra. 

Que 08 portuguezes eram bons, poderosos e gmierosos, 
havendo com elles a» attençSes^ devidas. 

Que do estabelecimento dos portuguezes em Maohona 

explorando as minas, poderia advir aos Matebeles os se- 

r gilintos beneficies : um mercado para venda dos productos 

do paiz ; muitos fatos para vestirem ; boa aguardente £a.- 

br içada por esses portuguezes, das grandes plantações de 

oaona que por ali havia ; boas espingardas, abundância de 

pólvora e muitas t>utras coisas que lhe pareeiam 'vanta- 

lesas. 

i 

Que a probibição de estada dos portuguezes em Macho- 
na, importaria uma guerra. 

Que, apesar da superioridade do numero e do valor 
nunca desmentido dos guerreiros Matebeles, descendentes 
doB inveaciveis anlos, nâo haveria probabilidade nenhuma 
de bom êxito, porque os portuguezes possuiam umas ar- 
mAs-inveoactadas ]^qIo» feitiços que matavam a uma distan- 
ckt immensa, capaz até de chegarem ás estrellas 1 ! 

^Que as lanças, Bettas e mesmo as espingardas com que 
oa «Matebeles estavam armados, de nada serviriam contra 
os portuguezes. 

' Que alie, senhor dos vastos- territórios dos Matebeles e 
Machonos, .queria saber se o povo era de opinião que con- 
servasse a paz e amisade com os portuguezes, consentin- 
do ' o •estabelecimento d'elles no paiz de Machona, ou se 
lhe queriam declarar a guerra. 

iN^estes chauris os diplomatas espreitam sempre a phy- 
sionomia do déspota autocrata, para serem da sua opinião, 
porque geralmente aquelle que o nâo é fica sem a cabeça 
na primeira opportunidade. 



94 PORTUGUEZES E INGLEZES 

Pelos anteoedentea e peU forma da arenga do Lo-Ben- 
gula era manifesta a vontade do soberano, e mó pró forma 
fora reunido o conselho. 

Segundo o uso todos ficaram calados á espera que o rei 
mandasse fallar um d'elles« 

O Lo-Bengula então dirigiu-se a um mancebo qoe oc- 
cupava um logar perto d'elle: falia tu, Chirengua, como 
chefe mais novo dos aqui presentes. 

O Chirengua prostrou-se três veses ao ch£o, e depois 
disse : sou d'opini2lo que o meu senhor o poderoso rei Lo- 
Bengula conserve a paz com os poi^ugueses e estroile 
com elles a amisade. 

— Falia tu agora, grande chefe de Ubangin, és o mais 
velho, o mais rico e de bom conselho. 

O chefe de Ubangin prostrou se da mesma forma irez 
vezes e proseguiu : Lo-Bengula, tu és um poderoso rei, o 
Muene puto * não o é menos ; que os dois irmãos vivam 
em pas longos annos, e todos seremos feliaes. 

O Lo-Bengula levantou-se solemnemente e exprimiu as« 
sim a sua resolução definitiva : depois da opinião de Chi- 
rengua o mais novo, e de Maniamba de Ubangin o mais 
velho, se houver de entre vós algum que tenha algam» 
coisa a dizer, que a diga e bem alto. 

— Senhor, aventurou-se então um chefe a dizer, foi 
sempre costume antigo dos nossos avó consultar os feM* 
Ç08 em casos como este, e não querendo faltar á lei zula 
peço humildemente para que os feitiços sejam ouvidos, 
allivianclp assim um grande peso do meu coração. 

— Serão satisfeitos os teus desejos, Chiota, respondeu 
o Lo-Bengula, e hoje ás 6 horas da tarde, na audiência 

* Kei de Portugal. 



EM AFRICA 95 



■-^-^y -^-/-w'---/-..- -/■-.---.-. -— ' /-. .-^■-■^ 



que marquei ao eaviado do Maene-puto^ serSo consulta- 
dos 08 fmtiços, — diiBe. 

A deoislio tomada no dmuri correu logo de bocca em 
bocoa, e em*pouoo tempo tinha chegado ao acampamento 
português eaos ouvidos d' Alberto Carlos. 

EstO) sabedor das intrujices dos cirurgiões africanos, 
que .sao os consultados para i invocar os feiiiços^ de que 
depende muitas veses o destino d^aquellas na^^esy prepa- 
rou um bom e valioso presente e servindo-se do seu ami- 
go o oimfe M'talaba, mandou-o áquelle senhor. 

Não teve de que se arrepender, porque, por aquella 
forma, oe fMços ficaram desde logo bem dispostos a fa- 
vor de — causa tão justa, — como o oiruigião disse ao en- 
viado. 

A's 6 heras da tarde o tenente dirigiu-se^para o palá- 
cio, com o ceremoaial do dia antecedente. ^ 

A mesma recepção ^o esperava. 

O liO-Bengula depoÍB dos comprimentos dirigiu- lhe as 
seguintes palavras : enviado do poderoso Mueno-puto, meu 
irmS« e rei de Portugal, n'um chaurt que esta manhã tive 
com os meus nobres e valentes vassallos, foram d'opinião 
que deveria acoeder as propostas de que fostes portador, 
e estreitar com um povo tão bom e generoso, as relações 
d'amÍBade que já mantemos ; porém, tenente Alberto Car- 
los, aa crenças dos nossos avós mandam que, para a deci- 
são d'um objecto tão importante, sejam consultados os 
feitiços^ sem o que o meu povo teria muito que soffrer na 
sua consciência. 

O tenente respondeu a este discurso : Poderoso rei Lo- 
Bengula, senhor dos vastos territórios Matebeles, chefe 
supremo de tantos, valentes e nobres guerreiros, em nome 



96 PORTUGUBZES E INGLEZES , 

do rei de Portugal yos faço sabar^ que o meu .asfto e se- 
nhor e todos 08 portugaezes muito louvam um povo que 
conhece os seus direitos e mantém com os visinhos ami- 
sade leal e digna, de que só pôde advir para uns e ouiros 
felicidades e venturas ; e respeitando as vossas crenças, 
espero pela decisSo doa feitígos, e prasa ao Deus que do 
alto dos céus nos contempla, que essa deoisSo seja como 
todos nós desejamos, para descanço do nosso coração, e 
para ventura dos povos matebeles e portugueses» 

Em seguida a estes pomposos discursos, a que os pre- 
tos dão grande apreço, a ponio de não gostarem. do bran- 
co que não £iále muito, contrariando-b como podem em 
tudo e por tudo, ficaram todos satisfeitos, e o cirurgião &2 
a sua entrada solemne ! ! 

Merece uma descripção especial este individuo que exer- 
ce tão poderj>sa influencia nos afrie^os, tendo muitas ve- 
^zes mais poder do que o próprio rei, que não passa n'este 
caso d'um manequim nas suas mãos^. 

O cirurgião era* um homem de qiuurenta annos, de gran- 
des pés e compridos braços, alto, espaduado e magro, com 
algumas cicatrizes no rosto, proveniente de golpes feitos ^ 
com o fio da lança. 

Trajava umpanno em roda dos. rins, e na cabeça traaia 
uma immensacape22a formada de pennas de differentes aves. 

O seu sacrário de consultas invisíveis consistia a'um 
cesto de canna aonde trazia objectos dos mais variados e 
discordantes,' na forma e na essência, taes como pedras, 
conchas, caroços de fructos indígenas, chifres de vários 
antílopes, bocados de madeira com feitios esquesitos, den- 
tes humanos . e d^animaes da fauna africana, espinhas de 
peixes, legumes secoos, e moitas outras cousas, a que 
não é possivel dar nome. 



EM AFRICA 97 

N'uma cabaça traria uma porçSlo qualquer de missanga 
grossa, misturada de milho socco. 

•O cirurgião advinha avançou com saltos e esgares para 
o meio da sala. 

Mecheu e remecheu o cesto e a cabaça^ deu cabriolas, 
pulos, dançou, fez pantomimas, bobices, caretas, tregeitos, 
visagens, qual d^ellas a mais tola e pedante. ^ 

Parava de vez em quando, olhava para dentro do caba- 
listico cesto, aonde ouvia a voz da sacerdotiza d^aquelle 
templo de canna, a que mostrava dar grande attençao ! ! 

Depois de repetir estas momices umas poucas de vezes, 
disse : 08 feitíçoã sSb contente».. 

As ancoretas * d'aguardente passaram de mHo em mão 
como era da praxe em casos tão solemnes ! ! 

Havia ainda uma outra prova a realisar, era o cura- 
tivq, experiência feita com uma gota Ao sangt^ do branco. 

Alberto Carlos submetteu-se dé boa vontade a ella, e o 
cirurgião depois de lhe fazer uma leve arranhadura n'um 
braço, tirou mà pouco de sangue que esfregou nas mãos, 
com o mesmo acompanhamento de saltos e pantomimas 
antecedentes, e decidiu por fim que os feitiços eram cori" 
tentes ! t 

A aguardente tomou a circular, e a audiência estava 
terminada ! 

No outro dia o tenente poz-se a caminho para Conji, 
levando a certeza do resultado da sua boa e feliz nego* 
ciaçSó, com o poderoso rei Lo-Bengula. 

Quando chegou a Conji, já ali estava o major e o resto 
da gente. 



IX 



DO SAVE PELO PARiLLELO iV \ SABÂGDt 



Todos 08 membros da expedição tinham goiUMio ató ali 
d'ama excellente jsaude. 

O major fôra incansável em reunir os elementos neoes- 
sarios para a boa hygiene. 

O alimento era abundante e da melhor qualidade. 

A carne fresca, e o pSLo e o vinho nunca faltaram. 

Os íructos mimosos dos paizes atravessados foram pa- 
gos, alguns bem caros, para refrescar, sem distincçao, to- 
das as pessoas. 

As jornadas eram feitas ao romper da manhSly e inter- 
rompidas ás 10 horas, quando o calor começava a fazer-aê 
sentir. 

Usava a expedição calçado apropriado para as differen- 
tes marchas e umas botas altas feitas por um sapateiro da 
Fuzeta, d^ura cabedal preparado em Tavira, que não dei- 
xava passar a menor humidade, antes que a marcha se fi- 
zesse pelas regiões molhadas ou pantanosas. 

O fato era de fianella, e o capacete de dupla cobertura 



EM AFRICA 99 

tinha uma eapecie de mADto de linho embebido n'uma dia- 
soluçSo de Bulphato de ohumbo e alúmen que preservava 
completamente o corpo da humidade dos caminhos e chu- 
vas. 

Todos eram obrigados a tomar banhos frios ao amanhe- 
cer, e a mudar de roupa no fim das marchas. 

Havia uma secção especial encarregada da lavagem da 
roupa, possuindo apparelhos para esse fim, dos mais mo* 
dernos e portáteis. 

Algumas creanças mesmo, que em Lisboa estavam ama- 
rellas e anemicas, iam recuperando forças e côr, com este 
methodico e salutar regimen. 

A não ser o caso das cachoeiras de Inharomirua, e um 
pequeno incidente no lançamento da ponte no rio Odssi, 
em qne uma du^ia d'bomens tomaram um banho forçado 
quando rebentou a espia, cousa alguma de triste havia a 
registar no diário. 

O Save forneceu excellente peixe, e alguns magníficos 
mariscos d'um sabor muito espeoial. 

O intimo convívio das differentes pessoas ia tornando 
aquellas fiimilias, n'uma familia só, e mais d^uma inclina- 
ção por occuíta que quizesse estar, tinha sido patente aos 
olhos de todos. 

O bom do capellSo ria-se, e diaia aos felizes namorados: 
— c4 os espero, e quanto mais depressa melhor. 

Ao que os interpellados rnborisando-se como cerejas, 
sorriam-se cheios de ternura e amor. 

O celebre Mutassa também tinha vindo visitar o major 
Sotto Maior, e com o coração nas mãos affirmara-lhe a sua 
inteira amisade, e o respeito e vassallagem ao rei de Por- 
tugal, levando em troca de tão boas palavras, uma magni- 
fica eapingarda de ^dois canos, que cobiçara ! ! 



r 

100 ' PORTUaUBZES E INGLEZES 

O lançamento da pente no Save estava prompto^.' 

No dia 20 de outubro estava a eitpediçSo toda na 
gem direita do rio. 

Uma immensa floresta de gigantes algodoeiros, basêia- 
parkiij jicus kotachyema, freixos, aeacias, sbmbtigei^s, 
mangueiras, gommeiras, faias argênteas, tamammdus inêi'' 
cGj acajohsí j jatropha ewrccts, kigdeas, protoaceas, pimen- 
teiras, loranthaceas, caoutchouc e variadas trepadeiras^ ti- 
nha que ser atravessada. 

Não havia nm único trilho de pé humano por aqaelles 
terrenos baixos e alagadiços. 

Cem homens armados de machados divididos em dtas 
secções iam abrindo caminho. 

A marcha assim era muito fatigante e deveras perígoMi. 

A natureza tinha porfiado em inventar toda a qualidade 
d'obstaculo8 á passagem do homem. 

D^entre as variadas trepadeiras, havia uma, a q^datna, 
que com os dardos envenenados fazia profundas e doloro- 
sâR queimaduras nos sapadores. 

Um arbusto terrivel, uma mimosa, a que os indigenas 
chamavam nnha de gato, mui semelhante ás esponjeiras^ 
rasgava as carnes e o fato, como garras de leão. 

E a avara natureza não contente com todos estes terrí- 
veis embaraços á passagem dos seres humanos, accnmulá- 
ra, havia séculos, os detrictos de milhões d^animaes de- 
compostos com as folhas cabidas, e podres por uma humi- 
dade continua, nauseabunda, quente e doentia. 

Os acampamentos tinham que ser feitos em sities poàco 
saudáveis e n'uma zona em que os individues mais terrí- 
veis da fauna africana eram verdadeiramente perigosos. 

O crocodilo, o hyppopotamo, o rhinoceronte, o leopardo, 
a magomballa, a raposa, o leão, a hyéna, o chacal, as co- 



EM AFRICA 101 

bras e outros terríveis reptis espreitavam nos pântanos e 
nas florestas a passagem d'e8te8 atrevidos seres humanos 
qae iam devassar as suas habitações virgens e seculares. 

Unia hyena mesmo chegara a arrebatar uma pobre 
jcreança de quatro anno», filha d'um Quiteve que acompa- 
nliava a expedição, e que a mSte imprevidente deixara 
adormecer fora du acampamento emquanto eiia colhia o 
ffQoto do maboque, uma espécie de romã brava, muito 
snccalenta e aromática, 

O major irritado com este facto, mandou deitar fogo á 
floresta, e pelo espaço de oito dias ainda fumegava o resto 
d'aquellas arvores colotoaes que viviam ha séculos entre 
OS' riba Chinica e Sítze. * 

O fogo só parou quando as aguas dos rios e riachos se 
lhe antepoeeram. 

Esta região de deseseis léguas qu{idradas ora deshabi- 
tada e de poucos recursos para os viajantes ; e apesar da 
expedição não temer a fome, todos tinham o maior empe- 
nho em sair d'ella. 

O major ordenou a máxima velocidade nas marchas, 
afim d'alcánçar os montes Cigarra e Machona onde então 
d^Msançariam alguns dias. 

A passagem pelos pântanos sempre lhes foi fatal, vinte 
pessoas estavum doentes com dysenteria, febres palustres, 
e*Hm europeu até, com um typho declarado. 

Oi oirurgiSes empregaram todos os meios para salvar 
e restabelecer os doentes, porem dois d^elles, já com o or- 
g^anismo contaminado daa doenças de Lisboa, não poderam 
resistir, e uma profunda cova tapada com pezadas pedras 
encimadas com a crua, marcou a passagem do europeu 
por aquellas inhospitas e selvagens regiões. 

O regnlo de Umtingesa, povoação importante ao norte 



; :*> > Tc:: ; , l-EZE^ E INiiLEZES 



f\ft u/fí*A Ci^^r/dy iMks nascentes do Sebaqué, veia com os 
s^.fi^ vav^ajjv^ ^rmtAti% em guerra pedir ama indenuusaçio 
(/«'/r iilgui/^si^ arvores, que dizia soas, e que o major tialn 

O niflj'>r faviiiuente se entendeu eom elle, e o boa do 
ríígiilo por mais uma botija d'aguardente de trinta gnns 
flíiixarÍM queimar o mundo todo ; e, tilo satisfeito fieou 
í) liando soube que a expedição se ia estabelecer aos 8a- 
iiagiié, quo pronictteu fazer ao major e aos seus, diversas 
vinilan. 

A fíXpcdíçilo tinha recobrado as forças e a saade oom 
<>;« Ijoni» o puros ares das montanhas. 

O ihcrmomctro aneróide marcava mil e quinhentoh ioe- 
1r«jBf e chofrava ás vezes mesmo a attingir mil e seiscentos 
Kww alguiiH pontos, sendo a media d' esta akitade noil e tre> 
^(»ntoB metros acima do nivel do mar, o que já era ama 
i'Of(ÍHO cxceliente para europeus. 

O rio Umniate tinha sido passado duas vezes, os montes 
Mnnliona, Cigarra e a serra Thaba Isimbo estavam trans- 
po.^^tos, AS difficuldades de todas aquellas penosas jornadas 
tinliam dcsapparecido. 

llavinm finalmente chegado aos campos à'onro de 8a- 
baguc ! 

O capiíTu) Estrelia nao tinha estado parado um momealOL 

() tcr]\.ni' para a edificação da lAkzHnnía nome danofta 
cidade de Machona, tinha sido cuidadosamente procurado, 
V (» levantanitnK- c elie estava prompt^. 

Só íaiiâT^ lu apT.^^^vaçào do major f «ra «r dar coi 
íis edincayòtíD at p-idra e cal, oii dí» \^m* . . . 

Enireiani. uil niai^e-.toso kilom^o.^ ^ a»^< de 



*:v cicies^. 



EM AFRICA 103 

ra, barro e capim estava preparado poios homens do ca- 
pitão e por muitos dos súbditos da rainha Mangira. 

£.m volta do kilombo existiam as abundantes minas de 
ouro, de prata e de diamantes de ^e fallavam os diver- 
sos documentos do imperador de Monomotapá, e que a 
rainha de Conji e Machona e a sua filha tinham ido mos- 
trar ao capitão. 

Dias depois chegava o tenente Alberto Carlos com a 
resposta do Lo-Bengula^ 

Tudo corria ás mil maravilhas como vulgarmente se 
diz, e sem perda de tempo deu-se começo aos impor- 
tantes trabalhos da lavra do ooro e da occupaçao definiti- 
va dê Machona. 

A rainha nâa oppunha o menor obstáculo ás obras e aos 
melhoramentos que via introduzir no seu reino. 

Os súbditos de* Lo-Bengula, os ferozes matabeles, ou 
voltaram para Gubulavaio, ou resolveram-se a trabalhar 
com os portaguezes na transformação d'aquellaâ selvagens 
regiões. 

Os engenheiros e os officiaes não tinham um momento 
de descanço alem do indipensavel para comer e refazer 
as forças. 

Um importante troço d*indigenas com diversos capata- 
zes foram encarregados de construir uma estrada a ma- 
<^dam quasi pelo mesmo caminho quentinha trazido a ex- 
pedição. 

O primeiro cuidado do major foi remetter para Lisboa 
uma importante quantidade d'ouro em barra e alguns dia- 
mantes em bruto, pedindo que lhe mandassem sem perda 
de tempo géneros de primeira necessidade, e muitos outros 
para pagamento dos salários aosi indígenas. 

As communicações telegraphicas com Sofala tinham li- 



104 PORTUGUEZES E INGLEZES 

cado estcbelecidas pelo pessoal da expediçUo, e diversas 
estações montadas nos sítios mais próprios com dois em- 
pregados cada uma, estavam sempre promptas a transmit- 
tir os despachos da expedição, 

O major nos tratados que celebrara com os regalos, so- 
bas e sobetas, tinha especificado a clausula de nRo consen- 
tirem estes que os seus cortassem os fios telegraphicos, e 
até ent^o nHo havia cousa alguma a censurar. 

A povoaçiío de Conji, no monte Mochena, entre dois 
rios, o Ucuela e o Incocuesi era um ponto estractegico de 
grande importância para a defesa da nova cidade e dos 
campos d'ouro, se algum dia os Matebeles tivessem tençIKa 
d'atacar a colónia portugueza. 

Em Conji morava como é sabido a rainha e a filha. 

O major construio para ellas o palácio de que eram di- 
gnas aquellas infelizes mulheres. 

O monte foi todo fortificado. 

As margens dos rios, fossos naturaes de grande impor- 
tância cobertos de parapeitos e trincheiras. 

O sitio escolhido para a edificação da Luzitania foi na 
encosta do ^erro que forma o contraforte do monte Mo- . 
chcna exactamente aonde o parallelo 19.® corta o terreno 
um pouco ao oeste do rio Uncueque, que tem as nascen- 
tes na serra de Musigaguva. 

Com mais al,i;;uma artelharia que viria de Lisboa^ e 
com as metralhadoras, a cidade devia ficar em bom esta* 
do de defesa, demais a mais que, o inimigo provável, os 
<.*afres e zulos, nSo dispunham d'artelharia. 

A região arável, e era ella de grande extennao e ferti- 
lidade, foi entregue aos agrónomos. 

E, tâo intelHgentemente dirigiram este ramo de servi- 
ço, que as arvores derrubadas formavam compridas pilhas 



EM AFRICA 105 

de madeira para obras e para combustível, e 03 bola com 
.as competentes charuas revolviam aquello solo fertilissimo. 

As abundantes correntes d'agua foram bem aproveita- 
<}as, e a irrigação para o milho, hortas e arvores de fructo 
plantadas de novo, fazia «e sem trabalho e com bastante 
proveito* 

Dentro de pouco tempo a colónia teria uma existência 
independente, e deixaria de importar da europa os géne- 
ros alimenticios a que estava habituada, havendo-os todos 
ali. 

A vinha também foi mettida nas encobtas que não pro- 
duziam outra planta, e ao fím de trez armos já os roxos 
<e dourados cachos fariam as delicias das mezas dos colo- 
co;» Macbonos, e encheriam os lagares da sociedade. 

Havia mezes ainda que o major chegara com um pu- 
nhado de gente a Machona. 

Tudo ali era selvagem e agreste. 

O sopro da civilisaçrio parecia que jamais adejaria n'esta 
parte Ua Africa. 

Que transformação se effectuara em tão curto espaço 
de tempo ! 

As risadinhas do padre Maia já tinham tido mais do 
que uma explicação exacta e verdadeira ! 

Muitos casamentos se haviam realisado e a colónia em 
breve tempo veria entre si mais algumas creanças, essa 
eterna alegria do mundo. 

A cada nubente era concedido um bom trato de terre- 
no ^que cultiva por sua conta; e esta medida tão simples, 
porque o terreno não faltava, daria em resultado o torna- 
rem-se os arredores da cidade em bellas quintas onde a 
vida europea se iria alastrando e inoculando nos indige* 
nas. 



106 PORTUGUEZES E INGLEZES 

Esta civilisaçâo evolutiva, a UDÍca que se deve empre- 
gar na Africa, traria uns benefícios incalculáveis. 

Os pretos, imitadores por excellencia, já nSo quereriam 
andar nús, teriam mesmo abandonado a polygamia, e de 
todo deixado os banquetes bárbaros de anthropophagia aon- 
de algumas victimas humanas esquartejadas e cosidas eram 
servidas como prato de resistência nos dias solemnes ! 

Sem pressão, e com o exemplo, os padres da colónia, 
verdadeiros pastores d*almas, e nFlo nefandos roapotas 
como alguns que por ahi engordam á custa de tanto desa- 
foro, iriam chamando ao seio da religião christã muitos dos 
habitantes das aldeias visinhas. 

Ao domingo seutia-se já ao longe e no alto das torres 
de madeira edificadas em algun? montes, o som do sina 
que chamava os povos a ouvir a verdadeira palavra de 
Deus. 

Batidas constantes aos differentes aniraaes perigosos, 
tinham livrado d'elles o paiz. 

O machado ia limpando as florestas, a enchada e o al- 
viSo esgotando os pântanos e renovanào as aguas nas la- 
goas piscosas. 

A lavra do ouro e dos diamantes era importante: as 
despezas cora a instalação estavam resolvidas, e o capital 
da companhia, ojSferecia grandes lucros. 

A felicidade, a paz, e a ventura, parecia que nunca se- 
ria perturbada entre aquelles ditosos filhos do trabalho. 

Com tudo ao longe, lá muito ao longe, accumulava- se 
uma ténue nuvem e quem sabe se ella seria precursora de 
grandes e inevitáveis desgraças ? ! ! 



i PAIXÍO DE M&6ELINA 

A expedição de Diogo SimSes Madeira, em 1607, que 
aaxiliou o imperador de Monomotapá contra o rebelde Ma- 
tazianhe, deixou bastantes portuguezes espalhados pelo 
valle de Zambeze, e especialmente no Zumbo e Mashona. 

Um d*elles, JoSto da Cunha Pçreira, fidalgo arruinado e 
aventuroso, achou bom partido a viuva rainha Catécula, e 
câion oom ella, com as honras e formalidades do paiz. 

D'esta ligação,^ e d^outras subsequentes com europeus, 
se foi introduzindo sangue branoo na família onde tinha 
origem a actual rainha Mangira, soberana de Machona, e 
viuTa do poderoso e temido NM^ansa, que por muitos an- 
DQft fôra o senhor absoluto dos destinos do povo Machoano. 

N'eete rani^o real tinha^se porém conservado sempre a ori- 
gem éo sangue primitivo da raça Bechuana, que segundo diz^ 
Liouis Figuier, é aquella cujas feições se approximam mais 
das feições dos europeus, chegando mesmo a serem bellas. 

O característico da raça preta apparecia bem visivel 
n'am ou n'outro membro doesta familia real, mas outros 



108 PORTUGUEZES E INGLEZES 

havia em que os lábios nSlo eram proeminentes, o naris 
nâo ora largo nem achatado, o queixo n2o era retrahido, 
03 olhos nâo eram redondos, os dentes não eram salientes, 
e a fronte n^o era curta. 

Somente o cabello não perdia o lanoso e a forma chata 
da origem, e o pé níla tinha o arqueado elegante da raça 
branca. 

Em alguns mesmo, esse tão fallado angulo facial, que 
tem sido objecto de serias polemicas scientifícas e atura- 
dos estudos dos sábios anthropologos, como Blumenbach, 
Frochaska, Lacépéde, Cuvier e Buffon, chegava a medir 
os noventa graus dos europeus, não passando além d'e8ta 
bitola, como passava o dos antigos e formosos gregos. 

Valmont de Bomare, outro sábio anthropologo, affirma, 
baseado em dados certos que, bastam quatro ou cinco ge- 
rações de raças crusadas, para um filho de negro se tor- 
nar branco, ou d'um branco se tornar negro, e foriaaloa 
uma ordem de crusamentos, pela qual são conhecidos naa 
colónias fran^.ezas a quantidade das misturas de sangae ; 
assim : 

1.® Um branco com uma negra, ou um negro com uma 
branca, produzem o mídato, que não é nem branco nem 
negro, mas d'um amarello tostado e que tem os cabelioa 
pretos, curtos e frisados. 

2.^ Um branco cr usando -^e com iima mtdatay ou um ne* 
gro com uma mulata, dão um quartao. A sua cor é com- 
posta de trez quartas partes branca e ama quarta parte 
preta, ou trez quartas partes negras e ama branca. O tom 
é um amarello menos carregado que no mulato. 

3.° Um branco com uma quarta^ ou um negro com uma 
quarta^ produzem um octavão, (sete oitavas partes de côr 
branca e uma oitava parte de côr negra, ou vice-versa}. 



EM AFRICA 10 D 



4.^ Um branco com uma octavã, ou um negro com uiha 
^cfAivã, produzem lim ser quasi completamente negro, ou 
quasi completamente branco. 

N'e8te caso ó que estava a formosa Magelina. 

Soa mâe era uma octavã, e seu pae um mulato d'ori- 
gem portugueza. 

Devido a um doestes phenomenos que os mais sábios 
qUo explicam completamente, Magelina era branca como 
'O liriO} e a sua • tea um pouco baça e avelludada tinha o 
perfume fresco da rosa Alexandrina e o tom expressivo 
-das filhas da Andalusia. 

A testa larga, o nariz aquilino, a bocca pequena, os 
beiços delgados, e os olhos rasgados dardejavam effluvios 
•de lu2 e d'amor, formando este conjuncto um todo d^es- 
âas formosas gregas, de que só os estatuários nos trans- 
mittiram a pureza e a belleza das linhas. 

Magelina, no meio das florestas bravas e çolossaes dos 
Beus dominios, cercada dos selvagens da sua. corte, entre 
o rugir do leão, o grito do chacal e o silvo da serpente, 
parecia a fada Alida de Garrett, quo com uma varinha 
magica dava vida, alegria, tom, poesia, çWidade e lus 
aquellas brenhas agrestes, e áquelles seres feros e bravios. 

Magelina, formosa e pura, com a suavidade da sua voz, 
' a harmonia do seu todo e a belleza do seu coração, tinha 
um tanto de cousa divina, baixada áquella terra selva- 
gem, erma e nua d'almas que comprehendessem aquelle 
palpitar de coração delicado e fino. 

Um septir vago e indifínido tinha-se, desde ha muito, 
apossado de todo o seu ser. 

Não comprehendia o vácuo immenso da sua existência. 

Não sabia formular o desejo da sua alma ardente e apai- 
xonada. 



* 110 P0RTUGUEZE8 E INGLEZES 

Soffria BÓ e resignada sem saber o porquê, e nas horas 
inexplicáveis para ella, em que o espirito prófugo divaga- 
va nas regiões desconhecidas, as lagrimas cornam arden- 
tes pelas faces esbrasiadas, sem que procurasse deleitas* 

A' vista d'Álberto Carlos todo este ser so transfer- 
mou. 

Á alma errante, o espirito transfuga, fixou-se. 

O coração bateu apressado, a idéa vaga tomou corpo, 
e a consciência até ali muda, fallou-lhe ao ouvido, e ii'um 
terno murmúrio ciciou-lhe a doce palavra — Hmor! 

Magelina transformou-se completamente, o vácuo d^aquel- 
la alma estava preenchido ! 

E com esta franqueza sublime e rude dos caracteres 
fortes acercou-se da rainha sua mHe, e radiante d^alegria, 
diase-lhe : mSe, sou feliz. 

Mangira, cheia de satisfação por ver a alegria que irra- 
diava do todo da adorada Magelina, pargnntou-lhe, com a 
terna doçura das mães : que tens filha querida que motiva 
tão de repente a tua felicidade? 

— Ouve mãe : ha muito que tu e todos os teus carinho» 
eram pouco para mim, que estes montes, estas florestas e 
estes valles encerravam a solidão, a tristeza e a morte I 

a Sentia tcdo o pezo do meu isolamento. 

aSentia que uma falta grande, fatal, mas desconhecida, 
l;iavia na minha existência. 

^Necessitava, comprehendo-o hoje, abrir o sacracio do 
meu coração a alguém que não fosses tu, necessitava mos- 
trar lhe este immenso amor que me vae n'alma, que me 
abrasa e consome ! 

— Dize-me, filha adorada, quem foi o feliz mortal que 
despertou o fogo d^essa paixão? Será elle digno d'ella? 

— Oh! é sim, minha mãe, é o formoso tenente Alberto 



EM AFRICA 111 

Carlos, que a eeta» horas deve estar com o Lo-Bengula, 
e breve voltará. 

— £ corresponde olle por ventura á immensidade doesse 
amor? ■ 

Magelina a esta pergunta tprnou-se Uvída. 

Uma dttvida pungento atravessou-lhe o espirito. 

Duvida pungente^ cortante e fria como o gume d'um 
gladio d'a$o fino. 

•«—Oh! sim, tens raziU> mHe, e se elle me não tiver 
amor I O que hm-de faser ? 

Magelina aaspendeii-se, todo o seu corpo tremia, e o 
sangue refluiu 4he ao coração de tal forma, que o rosto 
formoso e até ali oheio de vida e alegria, assumiu o aspe- 
cto da miorte i 

A pobre mfte leve medo e n'um transporte que só as 
m;Ies sabem ter, apertou a filha contra o peito e disse-lhe 
com a sua voz mais suave : nSo receies isso tontinfaa, és 
bella, formosa e boa, quem deixará de te amar, e. . . — 
acudiodolhe outra ordem d^idéas — se esse homem não 
tiver alma, n&o possuir nni coraçlto que comprehenda o 
teu, deve ser mau e ambicioso, e n'c3se caso, ouve filha 
querida, oe theseuros dos nossos avós, religiosamente guar- 
dados até hoje, comprarão o amor doesse desnaturado. 

— Não mãe, isso nunca, quero o amor d'elle, todo, in- 
finito e ethereo como o meu, e no dia em que veja que o 
seu desprezo é a recompensa do que sinto aqui dentr<^, 
e que o seu amor é d'outra. . . ouve bem, míte. . . esse 
dia. . . reunir-nosha então, lá. . . em cima ! 

Os olhos de Magelina brilharam d^uma forma tal, a sua 
fronte d^anjo tomou um parecer tão selvagem e desconhe- 
cido, que a própria mãe tremeu ao ouvir as palavras da 
filha. 



112 P0RTUGUEZE8 E INGLEZES 



Oito mezes tinham passado depois da iustalAçio da oo- 
lonia em Maohoaa» 

Os trabalhos realisados eram maitos, e já conhecidos 
dos nossos leitores. 

A prínceza Magelina não parecia a mesma mulher que 
o tenente Alberto Carlos encontrira quando chegon a 
Conji. 

Os fatos europeus, que usuva oom infinita graça, da- 
vâin-lhe um tom soberano e de superior elegância. / 

Aprendera a ler oom rara facilidade, e a soa occapaçSo 
favorita era ler sem descanço. 

Aquella fina intelligencia, e aquella poética organisaçUo 
ainda mais se romantisaram lendo as obras primas de Ca- 
millo Castello Branco, Garrett, Soares de Passos, Alexan- 
dre Herculano, JoUo de Deus, e outros auctores contem* 
poraneos de grande nomeada. 

O Eurico era o seu livro favorito, fallava-lhe a lingua* 
gem da sua alma. 

Aquelle amor selvagem do presbytero, tinha um tanto 
do seu amor. 

Como o Cardingo que divagava nas altas penedias do 
Calpe, confundindo as snas lagrimas, os seus lamentos e oa 
seus ais, com o som rouco da tempestade, assim ella tam- 
bém, de fraga em fraga, de -penedo em penedo, nas altas 
serranias de Conji, confiava ao zephiro brando do pôr do 
sol, ou ao impetuoso bramir do tufSo, as dores da sua 
alma. 

Como o presbytero, ella não tinha repouso, e ás vezes 
também sentada n'um barco, torneava o monte abandona- 
da á doce corrente do rio. 

O seu negro baíqueiro, lembrava Ranimiro, o timoneiro 



EM AFRICA - 113 

do Palmonio, conãdente inconecio das torturas d'aquelle 
grande e desgraçado amor. 

Se Magelina Toltava para o palácio que lhe haviam man- 
dado fiiíer, nlo te aehaya ali bem, fugia para as grutas 
recônditas do monto, e n'aquella solidão e isolamento re- 
oordava-se da caverna de Cavadonga nos fraguedos das 
Astúrias, e do epilogo dos infelizes amores d'Hermengarda 
6 d'£urico. 

O Mofuutíconf esse livro de suave poesia, ficava hume- 
decido com as suas ardentes e puras lagrimas 1 

Um dia Magelina leu os celebres amores de Margarida 
Oantier e de Armand Duval, arrojou o livro de Dumas 
filho para longe da si. 

Aqnella alma pura não podia comprehender um amor 
assim. 

N2o concebia o amor d'ama pecadora, e a regeneraçFLó 
por esse amor, e muito menos que uma mulher depois 
d'amar como Margarida amara Armand, se podesse entre- 
gar conscientemente a outro ainda mesmo que essa entre- 
ga fosse o veneno que escolhera para se suicidar ! 

Magelina náo comprchendia a subtileza doestes trans- 
portes. 

Mas comprchendia o amor do infeliz Armand. 

Paulo^e Virgina nfto era também o seu ideal. 

Nfto, o amor d'ella era cheio de stiaves transportes pu- 
ros da alma. 

Junto do objecto do seu amor precisava prehencher o 
vacno que fatalmente se havia de fazer entre a adoração 
extática e muda dos momentos enebriantes do extasi da 
alma, e a realidade da vida. 

Necessitava compartilhar com aquelle (|ue tanto amava 
os prazeres as fadigas da existência. 



114 PORTUGUEZES E INGLiJZES 

Magelina tinha sonhos acordada, qual d'elles o mais ex- 
travagante. 

Umas vezes via-se com Albc^rto Oavloi D'uma soli- 
dão formosa e encantadora, ondo iómeate o seu «mor en- 
chia o espaço vasio em toruo d^elies ! 

Outras vezes achavam-se no meia do ruido dos comba- 
tes, e do vozear das meti*alladocaft e do -ulular .do« ca- 
nhões ! 

O seu Ídolo obrava prodígios de valor ató ao delírio ^a 
temeridade, e ella, contente e risooha a seu lado, estan- 
cava-lhe o sangue das feridas, e bebia 4 vida n'um sorriso 
dos seus ! 

BrevC; o espirito doente phantasiava oa calmo» efluvíod 
do lar. *■ 

Via-se transportada á europa, no meio d'uma cidade 
desconhecids habitando uma casinha, muito bonita, muito 
clara e cheia d'encantos ! , 

Os filhos brincavam junto d'eUa, e Alberto Carlos dei- 
tado com a cabeça no seu coUo lia-lhe o Eurico ! 

A cada pagina virada Magelina cobria lhe a fronte de 
beijos ! 

Tudo isto porém eram sonhos vagos e nebulosos da sua 
ardente imaginaç&o. 

Alberto Carlos continuava a olhal-a muito, a tratal-a 
com summo respeito, 'mas não passava d'Í8to; não lhe di- 
zia sequer uma palavra d'amor ! 

Magelina cada vez andava mais triste. 

Já não confiava á mae adorada as negras dores do co- 
ração. 

Eram os cavos dos montes, o murmurar dos ribeiros, 
os pincaros das altas penedias que ouviam os pungentes 
lamentos da sua alma. 



EM AFEICA 115 

Um dia, no divagar constante por entre as selvas, ia- 
temara-se sósinha pelo mais espesso do bosque. 

Junto a um libeiro assentara- se a ler um livro de poe- 
sias de Çrarret. 

Cançada do corpo e do espirito, entregai^a-se sem que- 
rer a. um profutido ietbargo. 

O .'acaso oondusiu para ali o tenente Alberto Carlos, 
que andava á caya. ^ 

Que espálito nSo foi o seu quando a poucos passoô de 
si depara com Magelina adormecida e sosinha no meio 
d'aquelle bosque perigoso, onde ainda ha pouco se ouvira 
a voz potente do leão ! 

Alberto Carlos amava profundamente esta mulher, e 
oo fundo do coração recalcava aquelle amor, porque não 
queria que alguém se persuadisse que, cálculos egoístas 
entravam n'elle. 

Enoontrou-a adormecida ali, sosinha no meio da selva 
bravia não se poude furtar a contemplal-a extasiado. 

Como era bella e seductora ! 

Que sonhos seriam os d^ella ? ! 

Para os saber daria a vida ! 

N'e8ta contemplação divina, teve um sobresalto. 

Um pensamento penetrante e frio lhe atravessou a mente! 

Sé acorda derepente e me me vê aqui ? 

Dirá que a persigo e lhe quero impor 9 meu amor ! 

Então, quiz fugir para longe, antes que Magelina acor- 
dasse. 

Ainda ia a dar um passo, outro peiísamento o assaltou. 

Que perigos hão corre ella aqui sosinha e a- dormir no 
âmago doesta floresta cheia de mysterios tenebrosos ! 

Lembrou-se de a acordar, e obrigal-a fugir dos perigos 
desconhecidos. 



■^í 



116 PORTUGUEZES E INGLEZES 

Nâo teve forças para o fazer. 

Estava extático e mudo na oontemplaçfto do objecto do 
8eH ardente amor enchendo os plumSes dot azul ambiente- 
que a cercava, quando por entre as densas ramagens «pu* 
receu um vulto. 

Deslisava manso e magestoso, como o Adamastor. 

A uns vinte passos de Magelina pira e olhara admira- 
rado. 

Ficara fascinando com a presença d'aqueUe ser hama- 
nc no meio dos seus domínios agrestes. 

Era o rei das florestas, das selvas e do deserto, era um 
soberbo leHo ! 

■ 

O encanto, a magia e o assombro iam-se porém desva- 
necer, 

Magelina cançada da longa modorra, voltava i vida a 
pouco e pouco. 

Deu um leve suspiro annuncio de que o seu espirito, 
depois de escabroso passeio pelo infinito, tornava ao leve 
envolucro, animando-o e agitando-o. EntSo, estaria irre- 
mediavelmente perdida ! 

A fera olhava-a já com os 'olhos ensanguentados, com o 
olhar torvo do assassino e do carrasco, saboreando d'ante- 
mão victima tao bella e preza tâo faoil! 

Impressionada porém com a immobilidade d'aquelle cor- 
po, nâo vira ainda o tenente Alberto Carlos. 

Aquelles trez seres, pareciam extáticas vlsSes ! 

A força dos pensamentos de cada um, retinha-os isola- ' 
dos do mundo. 

O magnetismo dos olhos de fogo do leão, talvez pene- 
trasse os sonhos de Magelina. 

Esta mecheu levemente um braço. . . a fera não hesi- 
tou mais, — o prestigio tcnue que a detinha, acabara-se, 



<]Ue no aeii coraoílo houvesse o menor vislumbre de com- 
paix^4 de dó ou de remorso ! 

E OH dignos companheiros d'este Lord avançavam com 
elle, riodo e chasqueando das caretas que as viotimas fa- 
Klam DO ultimo stretor da agonia ! 

Eram dignos alhos d'uma nação de piratas ! ! 

Não envergonhavam os seus avós. 

El como elles, caminhavam em busca da riqueza, sem 
k«e importarem com os obstáculos, com as dOres alheias, 
1 com os protestos doa outros I 

Obstinadamente seguindo a sua ideia e desprezando, mes- 

} sem verem talvez, sem comprebenderem, que cada 
I de prosperidade da Inglaterra, tem custado á hu- 

■tdade muita angustia, muito lamento e muito sangue 1 
kA expediçilo chegou por dm á confluência du Lasani 

Bembe, e aeampou no recôndito das ruiuas d'nm 

1 forte portuguez, abandonado, assim como outros, 
k bastantes anãos. 

^ íBetn maia detensaa Sir Mac-Leod mandou reconstruir o 
> e ediãcaf n'elle uma pequena aringa, arvorando a 
1 ingleza. Sijmentu com uma proclamação que leu 
9 que fez lavrar um auto, tomou conta d'aquelle terri- 
iorio e de todo o outro ao norte, a leste e oeste, de que ae 
podesse apossar, em nome da Rainha d'Inglaterra ! 

O paiz que principiava ali tinha o nome indígena de Be 
cbuADa, e ãir Mac-Leod, acrescento u-lhe um land e foi o 
preciso unicamente pai'a que aquoUe território ficasse sen- 
do ingleií ! 1 1 

Sir Mac-Leod não fez mais nem menos, do que lÍ2éram 
mais tarde os cavalheiros d'nquella nação que nos disputa- 
[irios em Sofala, Manica, Zumbo, Tote, Baroze, 
> e no Lago Nhyassa ! 



134 POBTUGUEZES E INGLEZES 

Sir Mac-Leod foi a guarda avançada de todo» os ontros 
flibusteiros, que formando poderosas companlúas, nos W 
viam de roubar tudo a que a nossa negligencia e desmaselo 
lhes deixava deitar a mão. 

Sir Mac-Leod foi o primeiro inglez que abria o oamÍBlio 
para as ricas minas d^ouro, que nós; dois secolos antes, 
vimos e apalpámos, e« . . tolamente temos deixado jaser 
no terreno, á espera de que por ellas e por causa d'eUa8, 
soffi-essemos a vil bofetada do ultimatum de 11 de janeiro 
de 1890 1 ! 

Não sabemos, se um dia, a historia da humanidade, fa- 
zendo com o seu escabello frio e cortante a critica d'est0 
acontecimento, não dará a razão áquelles, a qae nds bcje^ 
com a cara a escorrer do látego com que nos feiiraau 
chamamos os ladrSes I 

E mais talvez, a historia, com o maior desdém, se ria 
de gente, que sendo grande, a ponto de serem gigantes os 
seus Albuquerques, Vascos da Gama e Castros, ae àeixo* 
paralisar, aniquilar e derruir, olhando para a* sombra. does- 
tes vultos, tremendo de medo por se verem pygmeasl 
Não se recordando que foi nos seus berços, acalenta^ 
tados pelos mesmos seios, e vivificados no mesmo am- 
biente que aquelles Semi-Deuses nasceram, cresceraoi e 
viveram I 

E' que n'elles havia a alma da pátria, a consciência da 
dever, e a honra de cavalleiros, e em nós, raça j^saet 
vada, se n'um momento temos assomos de velleidade. •• 
caímos ao menor tropeço e adormecemos á sombra da nosr 
sa inércia e da nossa preguiça ! ! * 

Sir Mac-Leod uma vez fora do território do Transvaal, 
fora do território d'aquelles que já algumas vezes tinha 



Aido serias linSes aos seas compatriotas, entendeu que tadu 
que Fosse pisando seria seu, eeria ínglez '. 

Deixando alraz de si o forte restaurado, a que poz o 
nome de forte Victoria, em honra de Sua Oracíosa Rai- 
nha, e n'elle nma guarníçKo de 'àO homens, hem armadoA 
e DiuJtiGÍadoa, para lhe garantir a retirada, caso o Loben- 
giila ao nSo deixasse seduzir pelas suas grandes e fallases 
promessas, poz-se a caminho na direcçilo de Tati. 

Por toda a parte por onde ia camÍDhando, Sir Mac-Lood 
encentrava vestígios dos pasaos dos Portuguezes. 

Aqui eram aa muralhas derrocadas d'um forte, ali as 
ruínas d'uma egreja, acolá um marco com nomes de por- 
tugiieaes que permaneceram ou passaram I 

Mas a tudoa eatea marcos milliarios da nossa prioridade 
nos descobrimentos afrícanoa, Sir Mac-Leod e os aeua sor- 
riam com desdém e deapreso ! 

Estavam chegados á margem direita do Macloutasi no 
sitio exacto onde eate rio é cortado peto meridiano 22° de 
latitude sid, quando ouviram na outra margem rufar os 
tambores iudigeuas em som de guerra. 

A ezpediçSe fez immedia tara ente attn, os carros foram 
postos em ciroulo, e os animaes, aa mulheres e as crean- 
^fi ficaram dentro d'elle, abrigados por grossos troncos de 
arvore e copada rama. 

Esta aringa improvisada, palisaada n'am momento, foi 
defendida por aquelles que estavam maia cançados da mar- 
cha, e pelos duentes, e serviria do ponto d'apoÍo no caaii 
d'um deaastro. 

O commando d'ella fui entregue ao Dr. Dayid. 

Mac-Leod dividiu o reato da expedição em três partes. 

Deu o commando d'uraa a Drew, outra a Edward Bu- 
ckte, e tomou elle em pesaoa o commaudu do terceira. 



136 PORTUGUEZES E INGLEZES 

Drew devia operar na direita, Buckle na eaquerda, e 
Mao-Leod com a reserva no centro, protegeria o flanco 
mais atacado. 

Com a expedição assim disposta esperou. 

O terreno n'este sitio era baixo, o rio tanto d'am lado 
como do outro espraia va-se bastante pelas duas margens. 

, Densas florestas de accacias e palmeiras, com idgons 
raros bao-bab tapavam a vista para todos os lados* 

Os pretos n'estas condições podiam chegar milito perto 
das avançadas inglezas sem que estas dessem o menor si- 
gnal d'elles. 

O Dr. David fez ver o perigo que corriam n'aquella po- 
sição, perigo que maior seria, se os pretos se lembrassem 
de deitar fogo á floresta. 

Sir Mac-Leod não desprezou o conselho, e immediata- 
mente deu ordem para que os carros retrogradassem para 
uma clareira que tinham deixado a trez kilometros ; « que 
metade da expedição trocando a espingarda pela serra e 
pelo machado, derrubasse n'um âmbito sufficiente, as 
annosas arvores, gigantes da floresta. 

Os pretos vendo retrogradar a expedição romperam em 
estridentes gritos e uivos, redobrando de furor, dando sal- 
tos monstruosos e entoando cantos de guerra, mas não ou- 
sando atravessar o rio. 

A noite aproximava-se e as cousas estavam no mesmo estado. 

Sir Mac-Leod deu ordem de retirarem para o caimpo 
intrincheirado pelos carros, e limitou- se a uma rigorosa 
vigilância de noite. 

O acampamento illuminado em differentes pontos a luz 
eléctrica, com lâmpadas e reflectores, não podia ser sur- 
prehendido com facilidade, e por isso Sir Mac-Leod e os 
que não estavam de serviço poderam dormir tranquillamente. 



, II 

• COLONISAÇlO k INGLEZi 

O cínica Inglaterra, ó bêbeda impudente, 
Que tens levado, tu, ao negro e á escravidão? 
Chitas e hypocrisia, evangelho e aguardente, 
Repartindo por todo o escuro continente 
A mortalha de Christo em tangas d^algodâo. 

GUEBBA JUVQUBIBO. 

Ao romper da manhã tudo estava a postos no acampa- 
mento, e a9 vedetas postadas na margem do no deram si- 
gnal da gente do regulo Cometendo se reunir em grandes 
bandos, entoando cantos de guerra. 

Sir Mac-Leod levantou-se de mau humor, e se na vés- 
pera nfto tinha avançado, era para dar descanço á sua 
gente e por o dia estar bastante adeantado. 

Almoçou á pressa, bebeu- lhe bem, e acto continuo avan- 
çou com a força dividida em três fracções, como no dia 
anterior. 

Os pretos á vista da expedição redobraram de furor e 
agitando os arcos, as zagaias e os escudos davam cabrio- 



138 PORTUGUEZES E INGLEZES 

las medonhas, que fariam inveja ao mais dextro acrobata 
europeu. 

Queriam com estes esgares atemorisar os brancos. 

Sir Mac-Leod apenas chegou á margem do rio, man- 
dou destacar um interprete a parlamentar com o chefe 
cafre. 

Os pretos vendo seguir para elles o emissário, e acos- 
tumados como estão todos os habitantes da Africa a estas 
scenas, esperaram as propostas dos brancos. 

Cometendo reunia os grandes para ouvir o enviado. 

Este disse cm poucas palavras, que os brancos queriam 
passar, que os caminhos eram de tddos, ^ que, caso os 
impedissem, o seu chefe passaria á força. 

Em vista doestas terminantes raz5es. Cometendo espe- 
rou a decisão do chauri (') que foi unanime em nSlo dei- 
xar passar os brancos, sem que estes pagassem um pesado 
tributo. 

O parlamentario voltou com esta iiesposta, accrescen- 
tando que Cometendo tinha dito, que, se os brancos tei- 
massem, não ficaria um único vivo para levar a noticia ás 
suas terras. 

O orgulho de Sir Mac-Leod não podia soffrer mais. 

Mandou que as forças de Drew e de Buckle estendes- 
sem em atiradores, fazendo uma marcha envolvente sobre 
a aldeia, e que a seiscentos metros 'escolhessem abrigos e 
esperassem o signal de fogo; e elle com o resto avançou 
resolutamente para a posição dos negros. 

Estes, apenas viram a massa dos brancos que se lhe 
dirigia, formaram também para combate. 

As primeiras filas negras avançaram em grande corrida, 

(') Assembléa para decidir das cousas importantes. 



EM AFRICA. 189 

e chegados que foram perto de Sir Mac-Leod, dispararam 
aa suas seitas, abriram aos lados e fugiram. 

Novos combatentes saíram da força principal e iam re- 
petir a mesma manobra, mas Sir Mac-Leod, que já tinha 
três homens feridos, não os deixou realisar o seu intento; 
mandou que as dafts primeiras fileiras fizessem uma descarga. 

As balas das espingardas de sete milimetros fizeram um 
effeito espantoso n'aquella massa compacta de pretos, ar>> 
mados com arcos e flechas I 

Dezenas d'elles cairam varados ! 

Houve bala que matou três ; tão perto estavam. 

Sir Mac-Leod retirou então, e mandou fazer o toque de 
fogo aos seus atiradores. 

O morticínio foi horrível ! 

Os atiradores apertaram a gente de Cometendo n'um 
ciroiilo de ferro. 

Aquelles que tentavam fugir eram mortos á bayonetada, 
á coronhada ou a machado ! 

D.'aquella tribu de mil e tantas pessoas nâo restava mais 
que a terça parte. 

Guerreiros, escravos, senhores, velhos, novos, mulheres 
e creanças estavaiíi estendidos no chão ! I 

Era horroroso aquelle quadro ! 

Oe oraneos abertos d^uns, d'onde saia a massa encephar 
Uca, misturavam-se com os intestinos d'outro6, o com o 
sangue, que em borbotões jorrava das feridas, feitas á 
bayoneta, no coração e no peito d'alguns ! 

Membros separados do corpo, palpitavam ainda I 

Aqui e ali uma mulher com o seio rasgado por macha- 
do, ferida por tiro, ou bayonetada, apertava na estertor 
convulso da agonia o filhinho querido e innocente, que es- 
trangulava no ultimo arranco da vida ! 



140 PORTUGUEZES E INGLEZES 

Os olhos esgaseados e torvos d'am que esha^ara o alti- 
mo suspiro, as mãos crispadas d'outro que queria arran- 
car o peito no sitio em que a bala o ferira, os gritos sel- 
vagens, medonhos, cortantes e estridentes d'aqueUes que 
ainda tinham um alento de vida, todo aquelle eonjvncto 
de dores, d'angu8tias, d'agonia e de morte era horrendo, 
terrível, pavoroso, hediondo ! ! 

No meio d'aqnella carnificina, contemplando os restos 
dos despojos de lobos famintos de sangue, estava o car- 
rasco de Sir Mac-Leod frio e impassivel ! 

Da gente de Cometende não escapou um só ; os que não 
morreram, foram feitos prisioneiros. 

Eram ainda uns trezentos, que amarrados de pés e 
mãos, esperavam a sua sentença fatal I 

Esta não se fez esperar. 

No cérebro de Sir Mac-Leod convulsionavam-se idéas 
tremendas e horrorosas. 

Queria, com um exemplo terrível e espantoso de bar- 
bárie e perversidade comprar o descanço futuro. 

Caro descanço aonde a consciência em visSes medonhas 
e tétricas iria aguilhoar, nas horas da insomnia e da fe- 
bre, a cabeça delirante e o coração enfermo. 

Sir Mac-Leod não se temia d'is8o. 

Sir Mac-Leod não tinha consciência, não possuia alma, 
não conhecia o bater do coração ! 

Âquelle corpo não tinha sido feito pela natureza, nem 
mesmo obedecia ás theorias do transformismo ; aquelle cor- 
po tinha sido creado pela mechanica, e pela rigidez áspe- 
ra, árida e positiva da arithmetica. 

Sir Mac-Leod ia dar ao mundo um exemplo formidável 
da colonisação á ingleza. 



EM AFRICA 141 



Eram 6 horas da tarde, o sol côr de fogo ia pouco a 
potico bailando para as florestas do occldente, decom- 
pondo nas phantasticas nuvens o rubi, o topasio e o ouro 
da sua essência. 

As franças das alterosas arvores beijavam-lhe, n'um ul- 
timo beijo de despedida, o circulo luminoso e ardente da 
sua aureola celeste. 

No ceu apenas umas ténues nuvens, ciaras, fixas e per- 
sistentes, como o destino. 

Um azul diaphano, deixava vêr o sitio onde a lua, com 
todo o cortejo d'estrellas, devia em breve apparecer. 

E, este ceu tão bello, tâo tranquillo e sereno, esta abo- 
bada de tantos mysterios e crenças, ia presenciar a mais 
atroz barbaridade, commettida por entes humanos ! 

Sir Mac-Leod acabara de jantar com o mesmo fleugma, 
com que iria para a camará ou para o theatro. 

Acompanhado d'alguns dos seus dirigiu -se para o sitio 
onde os prisioneiros estavam, desde manhã, amarrados ás 
arvores. 

Três inglezes empunhando afiadas facas o seguiam. 

O primeiro poste humano, que encontrou, foi o d'uma 
mulher. 

Nem a qualidade da victima o susteve no seu intento 
cruel. 

O carrasco, a um gesto de Sir Mac-Leod cortou-lhe as 
orelhas e o nariz, e com outro golpe desamarrou-a do seu 
pelourinho atroz ! 

A desgraçada tinha os movimentos tolhidos, esteve um 
momento em pé, e por fim cahiu e estrebuxou de dôr n'um 
charco do seu próprio sangue ! 

Os carrascos seguiram avante, e as creanças e todas as 
outras mulheres tiveram a mesma sorte ! 



142 PORTUGUEZES E INGLEZES 

Aos homens foi ainda reservado supplicio peior. 

A mão direita foi-lhes decepada e os órgãos geaitaes 
retalhados ! 

Para os chefes ainda foi guardado tormento mais fero, 
08 carrascos arrancaram-ihes os olhos e deixaram-os aioar- 
rados ás arvores ! 

Então os inglezes armados de machados derrubaram 
copadas arvores. 

Os troncos emmedados formaram circulo em volta dos 
mortos e dos tristes, presos ás arvores. 

O fogo ateou-se rápido, e as labaredas semelhando lín- 
guas de serpentes monstros, lamberam, com os dardos 
abrasados, os corpos dos infelizes 1 

Um crepitar de carne humana, junto ao estalir dos an- 
nosos lenhos, e aos gritos delirantes das victimas foi de 
quebrada em quebrada perder-se na immensidade das flo- 
restas ! 

Um clarão medonho e sinistro alumiou toda a noite o 
acampamento de Sir Mac-Leod. 

E este . . . dormia tranquillamente no seu leito de campanha. 

A manhã despertou bella e risonha, perenne de poesia 
c de amor. 

A vida cheia d'enoantos, devia sorrir áquella hora a 
muitos coraçSes ingénuos e puros. 

No acampamento de Sir Mac-Leod pesava umasemoçao 
fatal. 

Os mais pervertidos recordavam com terror as scenas 
da véspera e não sabiam mesmo se as tinham presenciado 
no mundo das realidades, ou se a sua imaginação deliran- 
te as phantasiára nos negros antros desconhecidos. 



EM AFRICA 148 

O acampamento foi levantado e a expedição poa-se a 
caminho. 

Lá ao longe, muito ao longo, quando fizeram a primei- 
ra paragem, ainda o cheiro nauseabundo da carne quei- 
mada, e o fumo do terrível e hediondo morticínio infes- 
tava o novo acampamento. 

Apenas d'aquella hecatombe horrenda, doestes assassí- 
nios tremendos restava uma lembrança no acampamento 
inglez, era uma irmSl de caridade do hospitio de Mr. Jo 
lívet, que perdera a razão, e nas suas visões pavorosas 
atormentava os expedicionários com gritos de louca ! 

O andar d'esta gente era triste e meditabundo. 

Á marcha por pântanos e florestas era fatigante e morbosa. 

No acampamento nunca mais reinou a alegria. 

Os remorsos de cada um tropeçavam-lhe no intimo, as 
suas pernas tropeçavam no can^nho ! 

Parecia uma multidão d'ebríos d'envolta com uma turba 
de somnambulos ! 

Não caminhavam, não deslisavam, não andavam, arras- 
tavam-se pezados e mudos, por entre as sarças, os lodos 
e os pântanos ! 

Próximo estavam já do rio Chacha, ou Chachi, que nas- 
cendo na serra Dunanzele corre quasi n'uma recta d'oeste 
a leste até ao 29® de longitude, e subindo um pouco a nor- 
te, forma um pronunciado cotovelo, recebendo ali as aguas 
do Umsiguainí e do Chaohani, voltando na direcção norte 
sul até ao paralello 22® ; n^uma suave inchnação para les- 
te deslisa por entre pequenas serras, e, conjunctamente 
com o Macbae ou Tuli se precipita no Bembe. 



144 PORTUGUEZES E INGLEZES 

O Chaoa corria impetuoso e rápido arrastando as aguas 
lodosas e barrentas que desciam das serras, onde ama 
forte trovoada as arrojara ha pouco. 

Os inglezes tinham ouvido ao longe o ribombar do tro- 
vSlo e visto no negro chumbado das nuvens scintiUar o 
raio, mas a tempestade desencadeava-se distante, e, E- 
geira e violenta, como são todos os phenomenos celestes 
na África do sul, passara ao largo. 

O dia conservara-se sombrio. 

O rio cada vez engrossava mais. 

O acampamento ia-se alagando. 

Nâo se podia prever o que succederia horas depois, se 
os inglezes se conservaissem no valle. 

Era necessário transpor com a máxima rapidez o rio, e 
ganhar os montes do norte. 

Os barcos de caoutchouc nâo se podiam aguentar na 
corrente. 

A ponte de bóias fluctuantes, de que dispunham, tam- 
bém se não aguentaria; as ancoretas não agarravam no 
fundo. 

Sir Mac-Leod viu o perigo, quiz retrogradar para uns 
pequenos outeiros que lhe ficavam a sudoeste. 

Os outeiros ainda distavam da cauda da columna quatro 
kilometros. 

Sir Mac-Leod deu ordem para os alcançarem. 

A natureza porém conspirava contra os inglezes ; tor. 
rentes vertiginosas d'agua da trovoada corriam das serras 
e dos montes, como labaredas liquidas sopradas pelo tufSo! 

As aguas do valle engrossavam colossalmente ! 

A expedição tinha a retirada cortada ! 

A agua já subia aos joelhos. 

Era forçoso passar, ou perecer. 



EM ÂFBICA 145 

A louca entoava cantos divinos misturados de gargalha- 
das estridentes. 

Os inglezes caminhavam pela margem do Chacha á pro- 
cura d'uma passagem aportada, e d'uma ponte. 

Nem uma arvore que abrangesse d' extremo a extremo 
as margens do rio, e a agua a crescer no valle I 

Os carros só a muito custo podiam rodar I 

Deus porém ainda não queria que aquelle gente pere- 
cesse .toda ; ou para lhes reservar tormentos maiores, ou 
para os conservar para castigo da humanidade rebelde e má. 

Ao longe avistaram na margem do rio umas grossas e 
alterosas arvores. 

Era a vida I 

Correram para ellas ; os machados n'um delirio de lou- 
cura avançaram com os annosos lenhos ! 

Dentro em pouco foram derrubados. 

A anciã do desespero e a consciência do perigo deu for- 
ças de Hercules áquelles homens. 

As arvores que cabiam iam assentando as franças dos 
seus troncos na margem fronteira. 

Por um movimento espontâneo cada um levou dos car- 
ros p que poude e transpoz a improvisada ponte. 

Do outro lado estava a salvação. 

A margem esquerda era mais alta e as aguas não ti- 
nham irrompido d'aquelle lado. 

Os carros e os bois haviam de ser sacrificados. 

Era uma perda importante, mas fatal. 

Sir Mac-Leod ainda quiz salvar os animaes e abando- 
nar somente os carros, que depois da passagem das aguas 
iriam buscar. 

Mandou amarrar os bois uns aos outros e passar pan^ 
margem opposta uma corda. 



146 PORTUGURZES E INGLEZÈS 

Soga improvisada e pouco potente para guiar aquelle 
comboio de ruminantes. 

A expedição estava quasí toda na margem esquerda ; 
só uns vinte homens e Sir Mac-Leod ainda restavam para 
passar. 

Os bois avançaram resolutamente pelo rio dentro e a 
montante da improvisada ponte. 

Sir Mac-Leod passou entSo para o outro lado còm ò 
resto da gente. • 

A este tempo já a agua do valle dava pelos peitos. 

O rio cada vez avolumava mais em vertiginosa corrente. 

Agora já arrojava nos borbotões das espumosas e ne- 
gras ondas os destroços, que os raios tinham feito nas flo- 
restas. 

Os bois avançavam para a margem esquerda a casto e 
sem poderem cortar a torrente em linha recta. 

De repente a soga rebentou ; os pobres animaes sem o 
sustento d'ella, abandonados a si mesmos, quizeram nadar 
com mais força ; embruiharam-se uns nos outros ; perde- 
ram a coragem e energia, e deslisaram na cheia ! 

O embate poderoso doesta massa foi d'encontro á ponte ; 
as pontas das arvores Já mal seguras na margem esquer- 
da, perderam o ponto d'apoio e tombaram na corrente. 

Sir Mac-Leod já tinha passado. 

Acabara de pôr pé em terra quando as arvores deslisa- 
ram arrebatadas pelas aguas. 

Os desgraçados que ainda estavam na ponte fôram lan- 
çados nas vagas alterosas e cavas 1 

N'am momento, as aguas poderosas, em borbotões turbu- 
lentos e convulsos abraçaram e enleiaram os infelizes, ar- 
rj^>atando-os em seus braços mortaes pelo Chacha abaixo ! 

No numero d'estas victimas contavam-se os três carras- 



EM AFRICA 147 



cos qae Sir Mac-Leod empregara na hecatombe de Ma- 
cloatusi. 

Era o castigo de Deus ! ! 

Do oatroladodo rio ouviam-se os cânticos divinos e os risos 
convulsivos da louca, da pobre irmã do hospiciò de Mr . JoKvet. 

Na hora do perigo ninguém se lembrara d'ella, cada 
um tratara de si, e da própria conservação. 

A triste subira ao toldo d'um carro ; as aguas invadi- 
ram o valle por todos os lados ! 

Niilgoem a poderia salvar! 

Os inglezes presenciavam horrorisados aquella scena ! 

As irmãs da caridade e os missionários estavam de joe- 
lhos entoando preces ao Senhor ! 

As aguas na margem direita cresciam cada vez mais ! 

A pobre louca pareceu ter um momento em que o sôu 
espirito recobrou a translucidez dos tempos antigos. 

Afoelhou, e ficou entregue a uma prece divina ! 

Depois. levantouHse serena e estendendo a mão para o 
lado de Sir Mac-Leod, disse, com voz aguda, que domi- 
nou o som rouco das vagas : 

£' o castigo que principia ! ! 

As aguas redemoinharam n^este momento, a base do re- 
fugio da louca oscillou, e a pobre estendendo os braços 
preeipitott-se aas ondas revoltas e desappareceu no turbi- 
lhão negro e medonho ! 

I 

Só 4im único ente humano se conservou estranho a tudo- 
isto ; era o Dr. David, o sábio, para o qual os acasos da 
vida, não eram, mais que simples accidentes ; para elle^ 
BÓ existiam os phenomenos scientifieos;e a matéria. . . 
era matéria^ fosse qual fosse a forma da sua apparencia. 



m 



IN6LEZES E HATEBELLES 

A jornada seguinte terminaria com as marchas e eom 
as fadigas. 

Tinha por objecto Tatí^ antiga cidade onde por tod& a 
parte se viam as ruinas da remota occapaçfto dos portu- 
guezes desde o Monomopatá até aos principies do sé- 
culo xvm. 

Tati mal recordava que tinha sido outr'ora grande e 
poderosa ; hoje é uma decadente aldeia, de cem cabanas, 
quando muito, com um insignificante regulo tributaria do 
Lo-Bengula. 

A aldeia mal palissada pouca resistência. podia offere- 
cer aos inglezes bem armados, e dispondo de quatro me- 
tralhadoras. 

Sir Màc-Leod mandou um dos seus officiaes com uma 
escolta occupar Tati, á força ou por vontade. 

Foi Drew a quem coube aquella commissão. 

A pequena escolta chegou com todas as cautelas perto 
de Tati. 



EM AFEICA 149 

Nem um rumor vinha lá do dentro, nem um ser vivo 
manifestava a sua cxistenoia. 

Tudo estava mudo e quedo. 

Quietação dos homens e dos elementos. 

Nem um sopro humano^ nem uni baíõ da natureza. 

Aquella quietação da aldeia, e dos seres que povoavam 
os espaços, tinha um tanto d^assustador. 

Drew teve medo da emboscada. 

Tinham o incumbido d'uma -missão, r havia desompe- 
nhal-a, antes que a sua vida e a dos seus companheiros 
fosse sacrificada. 

NSo era bem o cumprimento d'um dever que o obrigava 
a marchar para um perigo talvez certo. 

Era o seu próprio interesse. 

Era o interesse inglez, que falia mais alto aos verdadei- 
ros inglezes, que todas as fibras da alma. 

Com mil precauçSes Drew transpoz a palissada. 

Silencio absoluto em todo o recinto. 

Nem um c3o esfaimado e lazarento, nem um gato es- 
quálido e faminto a receber os inglezes ! 

A aldeia em peso tinha emigrado ! 

As portas das cabanas estavam abertas ; alguns vasos 
quebrados e espalhados pelo chão ; o lume ainda mal ex- 
tincto nos lares, tudo isto era a prova evidente de aban- 
dono completo. 

Se os pretos conhecessem Brialmont ou Vauban, Drew 
podia temer que a aldeia estivesse minada. 

A civilisação da Europa, porém, ainda não tinha che- 
gado a Tati ; e o engenheiro podia caminhar sem receio 
de ser arrastado pela explosão d'algum fornilho ou d'al- 
guma fogaça de projecção ! 

Drew expediu um homem a dizer a Sir Mac-Leod, que 

10 



150 P0RTUGUEZE8 E INGLEZES 



»^ ./•»•"/ ^ ^~ w/ w/V-N^^^-^^" - 



a aldeia estava occupada por elle e que nâo tinha encon- 
trado ninguém. 

O grosso da expediçllo chegou depois. 

Sem perda de tempo os engenheiros procederam a um 
levantamento do local. ' 

O theodolyto, os apparelhos portáteis de Peigné e as 
bandeirolas entraram em acçSo. 

Quarenta e oito horas depois todos estavam emprega- 
dos em levantar um poderoso campo entrincheirado. 

Ás metralhadoras tiveram uma bateria especial^ e deja 
dito em abono da verdade, o recinto ficou bem defendido 
o fortificado. 

O receio d'um ataque dava forças a todos. 

Receios infundados, porque já eram passados oito dias 
c ainda nem um único indigena apparecera perto de Táti ; 
mas trez homens, que se tinham afastado um tanto, foram 
encontrados mortos por golpes d'aeagaias. 

Uma forte escolta percorria os arredores de Tatí aoom - 
panhando os pesquizadores d'ouro. 

Estes não tiveram grandes trabalhos. 

Sir Mac-Leod possuia os mappas de Linschoten de 1599, 
o d'Hondius de 1699, feitos sobre documentos portugae- 
zes, onde vinham marcados os sitios em que nós Já ali tí- 
nhamos encontrado esse precioso metal. 

Quasi que era só necessário abaixarem-se e apanhal-o. 

Ouro havia-o por toda a parte em Tatí, nas serras, nos 
rios e nas nascentes. 

Apresentava-se em pepitas ou massas amorphas de^di- 
versos feitios, crystallísado em cubos ou formas derivadas 
como o octaedro, o duodecaedro e o trapezoedro, mistu- 
rado com cobre, chumbo, ou prata. 

Os Inglezes tinham só o incommodo de o recolher ! 



Eld AFRICA 151 

A febre do ouro dominoa todas as outras febres. 

Já se tinham esquecido dos aoonteeiínentos do cami- 
nho. 

M'aqueUe agrupamento d'homeps^ havia individuos de 
dififerentes nacionalidadeB. 

O espiípto de raça separou-os depressa. 

, O interesse e a ambiçSo de cada um dividiu-os a to- 
dos. 

Mas aqueUet homens nSo eram livres, nSo podiam pes- 
quisar^ achar e ehthesourar para si ; aquelles homens es- 
. tavam eontractados por uma companhia que os engajara 
e que lhes comprara os serviços, quer houvesse perdas 
ou ganhos. 

Aquelles homens * alugaram os seus braços para traba- 
lhar e o seu corpo para morrer, se fosse necessário. 

Não tinham mais cousa alguma, nem outros direitos, a 
nSo ser os seus salários. 

Um átomo sequer d'ouro achado e que n%o fosse reli- 
gioeamente entregue ao capataz, era um roubo. 

Entre a conveniência de cada um e o dever havia um 
abysmo. 

Abysmo cavo, negro e profundo, que nenhum anthro- 
pologista sondaria. 

N'aquelle intimo só Deus poderia penetrar. 

Deus tinha abandonado ha muito aquella gente ! 

O diabo tinha-se livremente apossado d'elles ! 

Nenhum pensava em ter remorso de roubar a Sir Mac- 
lieod o ouro que podesfie. 

Cada um se fez ladrão. 

Isto tinha só dois perigos, o de ser descoberto e sofirer 
o castigo e o de ir ao mato esconder o seu thesouro e ser 
assassinado por setta desconhecida ! 



152 PORTUGUEZES E INGLEZES 

Isolados uns dos outros ii£o confessavam a ningaem os 
sous passeios criminosos. 

O receio e o medo trazia-os cada vez mais desconfiados. 

Se houvesse um pequeno oonflicto entre elles, «quella 
horda rasgaria as entranhas mutuamente ! 

Todos se julgavam inimigos. 

Tinha desapparecido a alegria, só existia a ambiçEo 
adunca do lucro ! 

Os depósitos da sociedade, apezar de tudo, iam-se en* 
chendo ; os altos fornos redueiam o ouro a barras puras. 

Havia um mez que chegaram, e parecia já serem os 
únicos entes nascidos n'aquellas florestas 1 

Nem mais um ser humano, estranho á colónia ingleza 
de Tati se tornara a vêr. 

Sir Mac-Leod e os seus estavam isolados do resto do 

mundo I 

.1» 

Era domingo ; os protestantes entregavam-se ao descan- 
ço ou ás rezas dos seus ritos, e os outros, aos pens|unentos 
ou ao abandono de si mesmos. 

Á colónia de Tati estava entregue á modorra. 

Âo longe sentiu-se o som fraco d'um tambor. 

Os mais acordados aperceberam-se d'elle. 

Aquelle ruido aproximava-se. 

O rufar do tambor, ji n&o era um som, era o estrondo 
de muitos sons juntos, e cada vez mais distinctos, unidos 
ao clangor da turba. 

Já não restava duvida, eram os pretos que marchavam 
sobre Tati. 

Cada um dos iuglezes correu a buscar as armas. 

Sir Mac Leod mandou distribuir vinte cartuchos por 
combatente. 



EM AFRICA 153 

Os ódios tiveram as soas tréguas. 
A conservação geral fallava mais alto. 
A gente armada foi dividida em quatro secçSes sob o 
oommando de Drew, Buckle, Dr. David e Mao-Leod. 

Todos a postos, esperaram. 

Pelos alcantilados da serra fronteira, e por entre os cla- 
ros da floresta, viam -se massas negras movediças, compa- 
ctas ou dispersas em pequenos bandos. 

Dos lados de Charlei avançavam também formigueiros 
d'homens pretos. 

Os binóculos de Tati viam-n'o8 distinctamente. 

Nfio eram uma, nem duas aldeias qne marchavam para 
o forte, era o povo todo dos Matebeles que dava rendez- 
vonsem Tati. 

Também nSo era bem um povo, nem uma massa d'ho- 
mens indistinctos, era um exercito ! 

O exercito de Lo Bengula de mais de vinte mil homens, 
com alguma disciplina e armas de fogo. 

Era a Africa que se vinha bater com a Europa. 

Era o numero e a ignorância quo se queria medir com 
a arte e com a scíencia. 

Os homens de peito nú, de pernas sem calças, de ca- 
beça descoberta e pés descalços, iam bater-se com ingle- 
zes protegidos por parapeitos e trincheiras ! 

Mas eram vinte mil contra três mil, eram sete contra 
am, e o poderoso Lo-Bengula, o heroe africano, vinha 
com elles. 

Oa decepados de Maclontusi fizeram levantar aquelle 
exercito I 

Os gritos das victimas d'aquella hecatombe sinistra der- 
ramaram o fel da vingança n'aquelles zulos ferozes. 



154 PGRTUGUEZBS E INGLEZES 

As tribus d'Âfrica, mesmo as mais selvagens, também 
teem o seu formalismo. 

Os pretos nSLo se batem sem insultar os seas inimigos ! 

O exercito do Lo-Bengola foi chegando a ponea e pou- 
co, tomando posição em volta de Tati. 

Dir-se-hia que os pretos queriam esmagar os ingleses 
n'um abraço monstro I 

Já estavam a menos de um kilometro e oada vea apar- 
tavam mais o circulo. 

Os tambores indígenas rufavam de modo diverso, eram 
necessariamente ortdons que as baquetas transmittiam, 
porque a cada rufo havia uma evolução. 

Do campo entrincheirado observavam e n&o se meohiam. 

Havia um tanto de sinistro n'aquella immobUidade. 

Seria a consciência da própria forga, da força multipli- 
cada pelas poderosas armas de carregamento rápido, que 
lhes dava a coragem d'esperar nos seus postos, ou seria o 
fascinamento de todos aquelles diabos negros que ondeja- 
vam em torno d'elles? 

Fosso o que fosse, o certo é que esperavam. 

Mas esperavam o que? 

Esperavam sentir os braços potentes d'aquella horda 
selvagem apertar-lhes a garganta, e estrangulal-os talvez? 

D'aquelle oceano de carapinhas sahiram uns homens 
pretos ; seria a vaga ou a escuma ? 

Seria a óndulaçSo ou a ressaca? 

NSo era nada d'isBO, era o insulto que a Africa fera ia 
arrojar á face da Inglaterra civilisada ! 

E aquelles selvagens na sua linguagem única de sons 
estridules, chamaram a Sir Mac-Leod. . . canalha! 

Que se importavam os inglezes com um insulto de mais 
ou de menos, para quem tem ouvido tantos ? ! 



EM AFRICA lõõ 



Qae se importavam os ingleses oom um insulto partindo 
de tSo baixO| quando teem tragado e engulido outros 
maiores 2J 

ColviUe ou Maittan, disse em Waterloo ao ultimo qua- 
drado da guarda imperial: «valentes franoezes, rendei- 
vos». 

Um soldado desconhecido, o capitão Cambrone, respon- 
dea-lhe : Merde ! 

Victor Hugo fez d'esta palavra um poema e a epotheo- 
se d'aquella batalha. 

Segundo elle nSo foi Wellington nem Blucher que tive- 
ram a palma da gloria vencendo, foi Cambrone que os ul- 
trapassou immortalisando a França com aquella palavra 
de pvotesto pelo gigante cabido II 

A' palavra de Cambrone respondeu a voz ingleza: fogo ! 

Aos insultos dos pretos respondeu também a voz de Sir 
Mac-Leod : fogo 1 

Nuvens de fumo envolveram a terra, trovSo medonho 
abalou os montes, clarões sinistros de lava e metralha re- 
lampejaram um instante. 

Estava principiado o combate. 

Os ^ulos nStí ficarun sem dar resposta ; das primeiras 
filas d'aqneUás massas irrompeu também o fogo, e algumas 
balas vieram cahir em Tati, e alcançar os mal abrigados. 

Caso extraordinário, por estas balas conheceu Sir Mac- 
Leod, que 08 pretos também possuiam espingardas de car- 
regamento pela culatra e de tiro rápido. 

Eram as armas que outros inglezes, os negreiros e os 
negociantes, lhes tinham fornecido a troco d'homens ou 
de ouro 1 

Sir Mac-Leod pensou entSo. 

O caso era mais serio que parecia. 



156 PORTUGUEZES E INGLEZES 

Ali sóy no meio da Africa central, sem commanicaçSes 
com a Europa, sem soocorros proyayeÍB| e cercado por to- 
dos 08 lados, não poderia resistir muito tempo. ^ 

A fome e a fadiga, quando mais não fosse, vencel-QB-hía* 

Não, isso nunca. O que diria a Europa ! 

Era necessário a. astúcia. 

Sir Mac-Leod comprehendeu o que tinha a fazer. 

.0 primeiro dia de combate devia ficar memorável, de- 
via, pôr fora d'elle o maior numero de inimigos, só assim 
obteria uma paz vantajosa. 

Isto tUdo foi como um raio que lhe esclareceu a razão, 
que passou, alumiou, e foi suniir«se nas profundezas da 
sua alma. 

O fumo dissipou-se, a campina e os montes emergiram 
da crosta do globo, o chão estava juncado de cadáveres 
de negros zulos que se estorciam nas convulsSes da ago- 
nia, e nas vascas da morte. 

O grosso do exercito do Lo-Bengula retrogradou ; foi 
tomar posição longe dos tiros inglezes. 

Os zulos viram que não podiam combater da forma como 
tinham principiado o combate. 

Deram nova direcção ao seu ataque. , 

Agora já não marchavam em massas compactas. 

Os homens armados d'espingardas de carregamento rá- 
pido, e* eram perto de mil, estabeleceram a primeira linha, 
que occulta pelas sebes, pelas iQoitas e pelas arvores, fa- 
zia um continuado fogo de atiradores. 

Os Matebeles tinham boas pontarias, e o tenente Al- 
berto Carlos ensinara ao Lo-Bengula a maneira de se ser- 
vir das alças. 

O tiroteio que se seguiu, já não era um combato louco 
e confuso, era um cerco estabaleoido oom regra. 



EM AFRICA 157 

< 

Os zulos tinham as suas commumcaçSes livres, e os vi- 
veres nlo lhes faltavam ; podiam assim permanecer annos, 
que a guerra nSo os incommodava. 

Aos inglezes nSo succedia outro tanto. 

Os rétítos dos comestiveis^ salvos da innundaç^o, para 

pouco mais chegariam que um mez, e isto mesmo com 

muitas privaçSes, reduzidos a meia ração, como se diz a 

bordo, nos dias de temporal. 

Nem o recurso dos ratos de Paris, como os sitiados vde 
1870, tinham. 

Ali nem ratos havia. 

Encurralados nu campo entrincheirado, morreriam de 
fome e iriam diminuindo dia a dia, como as aguas d'um 
pântano estagnado, que se deixa consumir e absorver pe- 
los raios arjdentes do sol. 

Os dias iam continuando assim, e nem uma mu<}ança. 

De lado a lado, de parte a parte, alguns feridos e al- 
guns mortos a mais, e eis tudo. 

Balas trocadas, gritos e dores, e a situação a mesma. 

Se na gente de Sir Mac-Leod rareava uma fileira, não 
havia quem a substituisse ; nos guerreiros de Lo-Bengula 
86 desapparecia um batalhão para nunca mais se erguer, 
chegavam de todos os pontos brigadas completas ! 

Isto assim não podia continuar para os inglezes; era 
morrer a fogo lento o a picadas d'agulhas envenenadas. 

Já no intimo d^aquelles homens faziam echo as palavrag 
da louca em Chachá ! 

A superstição zumbia-lhes aos ouvidos as maiores ex- 
travagâncias. 

Principiavam a odiar Sir Mac-Leod e a não ver n'elle 
senão um monstro que os conduzira ao cemitério e lhes 
cavara a n^ra sepultura. 



158 PORTUGUEiSBS £ INGLEZES 

D'aqiii á rebelli&o pouco distava. 

Sir Mac-Leod, com o instiucto do lobo, e o olpliato do 
ehacal| presentíu o duplo perigo que corria. 

Chamou Drew, David e Buokle, e fea-lhes vêr a situa- 
ção. 

Era preciso apossarem-f^e do Lo-Bengnla ! 

A estes homens de ferro não pareceu estranha estit pro- 
posta, e friamente, como se se tratasse da coisa loais sim- 
ples, todos três se offereceram. 

Ponhamos de parte os nossos ódios, . mas os inglezes, 
também teem muito que admirar ! 

A' perfídia e á ganância de flibusteiros juntam, alguns, 
um sangue-frio admirável, e tambçm sabem morrer como 
heroes, quando é necessário. 

Os três disputaram encàrniçadamenie esta missão. 

Sir Mac-Leod propoz a sorte; foi acceite. 

A sorte designou Drew. 

Os meios de executar esta loucura pertenciam-lhc. 

Era mais de meia noite ; noite escura e sombria ; os dois 
implacáveis inimigos descançavam das fadigas. 

Por entre as sombras negras das arvores e das sarças 
arrastavam-se dez homens. 

Pareciam zulos pela côr, pelas ai*mas e pela forma como 
usavam a tanga. 

Coibtudo estes homens sairam do Tati mudos e silencio- 
sos, evitando até o quebrar das foi .is sêccas e dos ramos 
espalhados pelo chEo. 

Estes homens semelhavam serpentes arrastando-se de- 
vagar. 

De repente surge-lhe uma sombra detraz d'uma moita, 
era uma vedeta zula. 

Uma corda sibilando no ar, rápida como a eleetricida- 



EM AltaCÁ 159 

de, enroloa-se ao peseoço da yedeta, e n'aih momento 
cahia sem um lamento, nem um ai, nem nm suspiro ! 

Tinha sido Drew que punha em pratica o que' na índia 
lhe ensinara am natural, que salvara por calculo, da forca 
inglesa. 

A vedeta foi amordaçada e amarrada de pés e mãos. 

O &tal laço foi alargado então a tempo ainda, do pobre 
não morrer asphyxiado. 

Um dos homens de Dr^w condusiu-o ás costas para 
longe da linha de vedetas. 

— Escota, lhe disse Drew, queres viver ou morrer ? 

— Viver, pareciam dizer os olhos do desgraçado. 

— Entto ouve. 

«Nós precisamos &llar esta noite com o ,Lo-Bengnla, 
para terminar esta guerra. Tu conduzes-nos á tenda d'elle 
dás-nos a senha e tens a tua felicidade feita. 

O pretd mostrou vx>ntade de fallar. 

Drew desamordaçou-ò, e disse-lhe : 

— Se >dis um grito morres, e a ponta d'nm punhal fi- 
eou-lhe junto do coração. 

— Olha branco, o que me dás tu se te entregar (^ Lo- 
Bengda? 

«Não te admires do que te digo. 

«Odeio o Lo-Bengula, porque foi cruel para mim, rou- 

bou-me em tempo a minha mulher e a minha filha, para 

,a vender aos árabes, — eu não sou zulo, eu sou machono ; 

jurei vingar-me, porém nunca tive occasião; offiereces-m'a 

tu, acceito-a, mas com condiçSes. 

— Dize. 

— Quero dinheiro e os meios para me transportar a 
Zanzibar, onde sei que está minha mulher e minha filha. 

— Tel-os-has. 



160 PORTUGUEZES E INGLEZES 

— Pois bem, jura-me pelo teu Deus qae campriris a toa 
promessa, e vem comigo. 

— Juro, disse Drew, 

«Porém olha, que se nos atraiçoas, nunca mais vês 
tua mulher e tua filha, porque morrerás no mesmo "ins- 
tante. 

— Não, Vião te atraiçoarei, porque o meu ódio ialla mais 
alto que os meus escrúpulos. 

D'ahi a meia hora, Drew, os seus, e p guia traidor, es- 
tavam junto da barraca do Lo-Bengula. 

Uma sentinella estava á porta, o Judas deu-lbe a senha 
e fez-lhe uma pergunta qualquer. 

Á pobre sentinella não teve tempo de responder, o laço 
dos Índios apertou-lhe a gai^nta, mas d'esta vez a victi- 
ma cahiu para se não tornar mais a levantar. 

N'um relâmpago Drew e quatro homens precipitaram-Be 
na tenda do Lo-Bengula, e sem que este accordasse do 
profundo somno em que os trabalhos do dia e as continuas 
libaçSes d'aguardente o tinham mergulhado, foi amorda- 
çado e fízeram-lhe respirar um frasco de chloroformio. 

O Lo-Bengula, profundamente adormecido pelo effeito 
do poderoso narcótico, foi transportado para fora do acam- 
pamento. 

 sentinella morta foi egualmente levada d'ali e escon- 
dida no matto. 

Tal foi a diligencia de Drew. 

O espanto do Lo-Bengula quando ao accordar se encon- 
trou no meio dos inglezes, foi grande. 

Sir Mac-Leod prometteu-lhe a liberdade, e com ella o 
throno, se elle se obrigasse d'alí para o futuro a ser ami- 
go dos inglezes e sèu alliado, nSLo só para o caso de re- 
belliSlo d'alguma tribu, como para ajudar a pur fora de 



EM AFRICA 161 

Machona uns atrevidos portuguezes que ali se tinham os- 
tabeleeioo. ^ 

U inglez levou a sua magnanimidade áo ponto de offe- 
recer mil libras por anno pelos terrenos auriferos que per- 
tencessem aos Matebeles, e que a companhia de Sir Mac- 
Let>d qaizesBe explorar ! ! ! 

O Lo-Bengula pensou na sua situaçSlo, esqueceu os mu- 
tili^os de Macloutusi, a carnificma, a forma como os in- 
gleses se tinham estabelecido no seu paiz, e tudo o mais. 

Só calculou os lucros e as vantagens que d'ahi lhe ad- 
viriam. 

Depois d'um momento de silencio promcttou tudo o que 
os ingleses quizeramv 

Sir Mac-Leod fez com elle a troca de sangue, jura- 
mento sagrado entre os pretos, e o Lo-Bengula foi posto 
em liberdade. 

Estava a amanhecer. 

Â8 vedetas zulas avistaram o rei, fizeram-lhe a conti- 
nência um pouco admiradas de o verem caminhando do 
lado de Tati é verdade, mas mais surprehendídos ficaram 
quando todo o exercito recebeu ordem de levantar o campo. 

O Lo-Bengula reuniu todos os chefes e deu-lhes parte 
da paz que celebrara com os inglezes, e das vantagens 
que todos os Matebeles tinham com o cumprimento d'ella. 

Esta nova foi celebrada com grande batuque, e n'aqaelle 
mesmo dia ingleses e zulos eoibebedaram-se juntos 1 



\ 



IV 



A PBRHDU DOS INGLBZES 



Quando espreitas o fraco apoataa a elaviíis, 
Quando avistas o forte envergas a libré. • . 
A tua mão ora pede esmola ora assassini^ . . . 
Teu orgulho covarde, é, meu Bayard d^esquina, 
Como um tigre de rastro e um capacho de pé ! 

GruBBBA JuHQtnmo. 



Ao norte da França, em pleno Atlântico, existem luóas 
ilhas eriçadas de recifes. 

Ao longe sSo apenas uns. pontos, ao pé sfto umas rochas 
c acamadas e negras, d'onde a vegetaçllo foge e a nebrina 
permiuiece. 

Os abutres que ali teem nascido, espreitam. o mundo 
do mais alto d'aquellas penedias. 

Onde lhes cheira a carne em decomposição ou a preza 
fácil, eil-os ahi. 

Levantam as azas, fendem o espaço, pairam nos ares, 
e, na occasião, própria arrojam-se, devoram, sugam e to- 
mam conta do cadáver apossando-se da cova ! 



£M AFRICA 163 

Eites ninhos de carnivoros são pequenos para conter 
tanta prole. 

A Europa nao é de faoil tomadia, nem sufficientemente 
apropriada para porem os seus ovos, chocalhos, tival-os e 
empennar ! 

Só em Gibraltar poderam fazer creaçSo ! 
O sen lon(;o voo estendeu-se a outros paizes. 
A índia c a Africa foi-lhes prospera. 
Por toda a parte derrubaram e dormiram [uira se ef«ta- 
belocer. 

(Jresceram q multiplicaram* se como o phylloxera. 
Jv'aquí a pouco o mundo é todo d'ellcs. 
E nftu se descobre um remédio para estes sugadores^dá 
humanidade ? ! 

Portu[;al adormeceu com os seus sonhos de gloria de ha 
troz séculos, e accorda para viver de recordaçSes. ^ 

Mas n'este torrão e n'este século ha homens positivos e 
sábios, chamam -se os fortes/ 

Por toda a parte se dizia e escrevia que os inglezcs 
avançavam por todos os lados da Africa para pontos in- 
determinados. 

Que os seus missionários faziam uma propaganda im- 

mcnsa da biblia e d^ulgodâo, e, que atraz dos santos ho- 

m<3ns iam as companhias exploradoras e os conquista- 
dores. 

Que importava aos fortes as nossas colónias ! 

Eram um pezo enorme para a metrópole, — diziam el- 
les — cem os pollegares nas cavas do coUete e a superio- 
ridade politica que lhes assiste I 

Ttido ora bom, e o mundo uma delicia se FuSo e Fuão 
íosse eleito deputado ! 



164 PORTUGUEZES E INGLEZES 



Esta gloria de ter assento em S. Bento, era superior á 
gloria de ter entrada no reino dos céus ! 

Que importava aos Jbrteij a esses espíritos superiores, o 
resto do mundo ? 

 sua vaidade estava satisfeita ! 

Os filhos das comadres e dos compadres teriam logar á 
meza do orçamento ! 

O voto estava certo ! 

 África, para elles, era apenas um paiz árido, doen- 
tio, pobre e estéril ! 

£, demais a mais era terra de degradados ! 

E' verdade que alguns tolos diziam haver ali ouro, dia- 
mantes, valles fertilissimos que produziam centenares de 
sementes e podiam fazer a riqueza da velha e cançada 
Europa ! 

— Mas isto são utopias, diziam, cheios de fleugma bri- 
tânico. Os orçamentos é que faliam como gente. Dois mil 
contos para a África oriental, outros dois para a Occiden- 
tal ! Isto é um roubo ! 

Áquillo é um covil de ladrões, que só serve para nos 
roubar ! 

Deixal-a roubar também, que só assim se extirpar?Lo 
os ladrSes! 

E' ourar a ferida do cào, com o pello do mesmo cão. ^ 

Os inglezes estabeleceram-se no Nyassa, no Ohire, no 
Zambeze, no Zumbo, em Machona, em Sofala, em Mãni- 
ca, na região dos Lagos, no sul, no norte, no oriente e no 
occidente. 

— Deixal-os estabelecer, diziam os taes fortes. 

Os inglezes arrancam do solo que nos pertence, carra- 
das de diamantes e barras d'ouro com que avassallam o 
mundo e se enriquecem. 



EM AFRICA 165 

Que temos nós com isso? Lá estão depois os emprésti- 
mos que encherão os nossos cofres, emquanto as nossas 
fidalgas pessoas se pavoneam pelo Chiado e faz&ra Ave- 
nida. 

O exercito quiz ir pôr termo á occupação dos nossos 
torrenos africanos e expulsar as companhias inglezas, pe- 
dindo em* altos brados que o deixassem marchar. 

O exercito é idiota, diziam os taea, não sabe que não 
tem generaes, que a disciplina é fraca, que não tem far- 
damento, que os fornecedores lhe dão gato por lebre, e 
que nem sequer tem calçado que preste ! 

O exercito que vá fazendo as eleições e as guardas aos 
andores, e que se deixe de tolices ! 

For esta epocha appareceu também uma nova turba de 
escriptores, chamaram-lhes nephelibatas l 

D'entre os fortes, os n&phdihatas e os que somente eram 
tolos sem mistura, destacaram-se uns loucos, uns visioná- 
rios — chamavam-se : Serpa Pinto, Silva Porto, Capello, 
Roberto Ivens, Cardozo, Álvaro Castelloes, Victor Cor- 
don, Valladim e Henrique de Carvalho ! 

Estes pobres espiritos enfermos teimavam em arriscar a 
Tida e a saúde percorrendo a Africa de norte a sul e de 
oeste a leste, para não fazer esquecer ao gentio a cor das 
quinas portuguezas, avassallar os povos das regiSos remo- 
tas onde 03 nossos antepassados foram ha três séculos, e 
antepor á torrente de missionários e exploradores das com- 
panhias inglezas o dique do seu heróico peito e a barreira 
do seu valente amor pátrio. 

Ora, que cousa era atravessar a Africa ? I apregoavam 
elles, assestando o monóculo para uma mulher que passava. 

E' como um passeio a Cintra com fois-gras e champa- 

^ 11 



166 PORTUGUEZES^ E INGLEZES 

Ey a aureola d'aquelles heroes «mbaciava-se com o bafo 
dos jortea, dos tolos e dos nephelibatas ! 

No entanto aquelles nomes, como o do Christo, echoa- 
vam nos confins do mundo. 

Tal era a situação quando rompeu o dia 11 de janeiro 
de 1890, e os raios da alvorada que despontava por entre 
um ceu toldado de nuvens, allumiaram a terrivel palavra 
arrojada lá do norte ás faces de nós todos — 

Ultlmatum ! ! ! 

Os nossos fieis alliados, os nossos bons amigos inglézes 
ameaçavam-n'os bombardear Lisboa e jbomar Cabo' Verde, 
senão lhes escancarássemos de par em par as portas da 
Africa oriental ! 

Os fortes, os tolos e os nephelibatas tremeram então ! 

Com o medo, rojaram pela terra suja e lamacenta, a 6i- 
ce livida e cadavérica ! ^ 

Prostrados como os musulmanos, imploravam miseri- 
córdia e clemência ! 

A canalha irrompeu nas ruas. 

Dos bairros sujos do vicio e da immundicie surgiu a 
escoria. 

Arremeçou-se ás praças em ondas turbulentas, apertan- 
do-se e espesinhando-se nas ruas estreitas ! 

Gritavam e uivavam, sem se lhes perceber o que di- 
ziam ! 

Eram echos confusos de turba, que exprimiam — anar- 
chia ! 

Os soldados nos quartéis estavam debaixo de forma tris- 
tes e meditabundos, como o remorso da pátria. . . 

Inactivos, pela disciplina, ouviam áo longe o dangor da 
plebe desenfreada 1" 



EM AFRICA 167 

Trez dias e trez noites durou a tempestade de poeira e 
de lama. 

Houve quem quizesso chamar áquíUo — a convulsão da 
pátria ! 

Felizmente este pobre Portugal ainda não desceu de 
todo ás profundezas da miséria e da ignominia ! 

A afronta do inglez fez por momentos parar o sangue 
vivido da nação, pelo espanto do inaudito. 

Ia tendo uma apoplexia fulminante, tal foi o effeito rá- 
pido do abalo que soffreu. 

Um esquadrão de cavallaria desceu a trote largo pela 
Calçada do Carmo e do Duque, um pelotão de policia to- 
mou a boca das ruas na Praça de D. Pedro. 

A turba dos patriotas foi assim entalada entre a policia 
e a municipal. 

Começaram as levas para bordo do Africa e do índia. 

Perto de mil rotos e sujos amontoaram-se nos porões. 

Os commissarios de policia levantaram os autos. 

As folhas de papel avolumaram- se e encheram-se de 
nomes. 

Resultado do apuro fínal: aquelles bons patriotas, na 
.sua maioria, tinham cadastro pesado nos annaes do gover- 
no civil e da Boa-Hora ! 

Era a canalha reles e vadia, que nas tortuosas viellas 
arrastava a vida na orbita das toleradas ! 

Para tristeza e magua d'algum coração de pae honrado 
e honesto, tinha ido d^envolta com a turba, o filho enthu- 
siasta, e d'alma nobre, que juntara ao uivar da corja, os 
gritos plangentes da sua alma opprimida ! 

Quando se amontoa o trigo na eira, não ha tempo de 
separar o bago são, do joio, da hervilhaca e da» pedras. 

Mais tarde é que se joeira. 



168 



PORTUGUEZEB E INGLEZES 



Os nossos fieis àlliados consentiram, do alto do seu po- 
der, em negociar comnosco ! 1 ! 

Todo o mundo viu logo a fabula da partilha do leão 
com os outros animaes. 

As tolices que se aventaram n'este doloroso período, fo- 
ram tantas e taes que a historia pejará as suas paginas, 
se algum dia alguém ou a posteridade, se lembrar de fazer 
d'elle a synthese. 

Algumas eram tao cómicas, que só pertencem ás Be- 
vistas d'anno de theatro barato. 

Uma grande subscripçâo nacional se organisou para ar- 
mar o paiz até aos dentes e crear de repente um exercito, 
de que dias antes ainda escarneciam e achavam supérfluo. 

Como se os exércitos fossem as massas armadas, sem 
instrucção especial, e sem officiaes com longo tirocínio das 
sciencias da guerra moderna, tirocinio que só nos campos 
d^exercicio se aprende, e se torna efficaz. 

Mas, oh ! desillusâo. A grande subscripção nacional, ao 
fím de dois annos apenas attingiu quatrocentos contos, e 
para isso foi necessário que do Faço e da Camará muni- 
cipal de Lisboa, sahisse metade d^essa verba e do bolso 
da grande commisâao uma quarta parte ! 

O paiz, na sua pobreza e no seu patriotismo, deu o 
resto I 

Isto foi o melhor thermometro para avaliar a febre dos 
patriotiqueiros ! 

E, ainda assim, passado tempo, do Porto, uma celebre 
commissao reclamava esse dinheiro para . . . um asylo ! 



As libras, n'este delirio convulsionado de patriotismo, 
foram arrojadas com desprezo — chamaram-lhes piratas ! 



EM AFRÍCA 169 

Mas, «caso raro, passados poucos mezes, alguns patriotas 
ajudaram a 46sgra$ada crise monetária de que estamos 
Boffrendo as consequências, e andaram de porta em porta, 
d^aldeia em aldeia, a compral-as com premio de cinco, 
seis e sete tostões, para as vender aos cambistas e a ou- 
tros, a dez, doze e quinze ! 

Já nSo eram piratas, eram — a agiotagem ! 

Negociantes dos mais bem conceituados acabaram com 
os fornecedores d'Inglaterra, porém, as mercadorias ape- 
sar de tudo isto, chegavam a Lisboa e ao Porto, tendo sa- 
bido das casas inglezas ! 

As vias por onde transitavam e os rótulos, é que eram 
outros ! 

Os negociantes honrados enganavam assim os crentes e 
a si próprios ! 

Ficavam porém com a consciência tranquilla ! 

Oh ! miséria humana ! 

Esta subtileza saloia só difficultou mais as transacções 
e augmentou o preço dos géneros. 

Os jornaes avançados disseram cousas fabulosas, e o an- 
núncio do inglez ficou parado — por alguns dias — na cai- 
xa do compositor ! 

Houve uns ministros que sahiram, outros que entraram ! 

Todos as pães e salvadores da pátria entoaram em coro 
o miserere do Trovador — corro a scdvar-te. 

A posteridade que lhes desculpe os erros que commet- 
teram ; as intenções eram boas, o meio, o maldito meio, e 
o intrincado do caso, é que era péssimo. 

Um verdadeiro fim de século ! ! ! 

Negociaraín-se tratados. 

Houve uma trégua alcunhada — modus vivendi. 



170 PORTUGUEZES E INGLEZES 

Appareceu um livro chamado — Branco — esclarecendo 
todas estas cousas e outras mais. 

Ha porém antonomasias na vida que nao teem explica- 
ção, chamar livro branco áquelle livro, quando as suas 
paginas eram negras como a noite e a treva, é o mesmo 
que chamar cândida e pura a uma meretriz ! 

Ao lampejar do primeiro tratado de 20 de agosto de 
1890, houve outra vez assuada. 

A canalha assalariada, amda tinha voz na garganta 
aguardentada, e na algibeira uns reles cobres com que a 
politica lhes pagara a berrata patriótica ! 

Entre este fervilhar de paixões e talvez d'arranjos, ha- 
via também a sinceridade e a convicção dos corações leaes 
e nobres, havia o heroismo da mocidade — havia a aca- 
demia. 

Era uma fína e branca cambraia no meio dos farrapos 
immundos da plebe. 

Tanto mais se destacava, quanto maior era a sua alvura 
entre os monturos das ruas. 

Valentes creanças, o futuro vos avaliará. 
.•......••..•..■••.•••.••.•..••^■•.•.••..■•••.•. 

Novas negociações tiveram logar, talvez unf pouco peo- 
res do que as primeiras. 

Então, não sabemos explicar o porquê, não houve arrua- 
ças, nEo houve clamores, não houve nada ! 

O tratado de 28 de maio de 1891 foi pacificamente ap- 
provado. 

Só teve seis vozes, a protestar contra elle, na camará 
popular ! 1 (*) 

(») Vide nota 8—0 tratado de 28 de maio de 1891. 



EM AFRICA 171 



./->» ■Vrf^. V. ■•'^ "» 



Este livro, não é um livro politico ; se trouxemos estas 
cousas a lume, foi porque nos são necessárias á nossa his- 
toria. 

Vamos por tanto continuar n'ella. 

Sir Mac-Leod tinha estabelecido as communicaç5es com 
a Europa e com as outras companhias inglezas que esta- 
vam na Africa. 

Insulares e colonos todos estavam d'accordo, havia po- 
rém entre elles, mas somente para sua defeza, uma dua- 
lidade distincta — as companhias, e os inglezes ! 

Quando níto convinha o procedimento d/uns, era descul- 
pado pelos outros, com a nenhuma responsabilidade dos 
actos d'aqueUes! 

A colónia de Tati estava ao facto de todas estas subti- 
lezas, e ia obrando por sua conta e risco, como lhe con- 
vinha e parecia. 

No decorrer d'este tempo o Lo-Bengula era um amigo 
dedicado dos inglezes. 

Os presentes que recebera foram tantos e tão valiosos, 
que o pobre do rei preto, deixara-se seduzir de todo. 

A colónia de Tati passava além de Gubulavaio. 

A Luzitania, que cada dia aformoseava mais as suas 
bellas ruas e praças, já tinha sido visitada muitas vezes 
pelos agentes de Sir Mac-Leod, e até este próprio accei- 
tára um cordeal jantar do major Sotto Maior. 

A nuvem negra que ao longe se via ha muito, caminha- 
va rápida para a colónia portugueza de Machona. 

N'ella vinha a tormenta, a tempestade, e talvez. . . o 
naufrágio ! 



CERCADOS ! 

A vida, esse composto de misérias e descrenças, é como 
o tempo e a eternidade, tem alvoradas e trevas, bonanças 
e tempestades, azul e negro, diaphano e opaco, alegrias 
celestes e dores d^abysmos. 

No confuso doeste cabos ha uma aurora perpetua, -um 
jubilo infinito, um riso d'anjos — é a mocidade ! 

Uma luz divina irradia d'ali, alumia a existência e aque- 
ce a alma — é o amor. 

Carlos Alberto e D. Júlia amaram-se. 

O seu amor e a primavera caminhavam a par o de mãos 
dadas. 

Um, tinha o extasi das causas ideaes e ethereas, a ou- 
tra a fragancia das flores e a personificação do bello. 

A mocidade vive n'um paraiso eterno, ama o casulo 
como a crysalida, e chora quando se transforma em bor- 
boleta. 

E' n'esta metamorphose que ella se conhece humani- 
dade. 



i^y L. 



EM AFRICA 173 

Alberto Carlos e D. Júlia percorriam o primeiro pe- 
riodo. 

Eram felizes e amavam-se. 

Tudo em CoDJi e na Luzitania estava impregnado do 
aroma suave d'esta primavera ridente. 

Respirava-se um ar de festa, de saúde, d^alegria, de 
bem estar e de felicidade. 

Era o dia do casamento do tenente e da princeza. 

Havia pompas e galas nas ruas e nas casas, mas supe- 
perior a isto tudo, existia a verdadeira amizade áquelle 
par, que perante Deus ia unir os seus destinos até á mor- 
te, e quem sabe, talvez além da campa, no in&nito e no 
desconhecido. 

Aquelle amor era tanto, que o pó da terra vil nao o 
devia apagar e sumir. 

Por entre a multidão caminhavam os dois para a egre- 
ja matriz. 

Um lusido acompanhamento os seguia. 

Nslo eram estes ou aquelles que mostravam aos noivos 
a sua amisade, era o povo todo da Luzitania e de Conji 
que os amava sinceramente. 

Entraram na egreja e oraram aos pés do altar uma pre- 
ce reverente. 

Pediram a Deus, o que os homens lhe nao podiam dar, 
a felicidade constante e a mocidade infinita. 

O padre Maia sanctifícou a uniSio d'aquelles seres, que 
se idolatravam. 

D'ahi para o futuro tinham o direito de se amar á luz 
do dia e á vista de todos. 

O coração d'elles parou, para bater mais apressado, 
quando pronunciaram o sacrosanto sim. 

£' que esta simples palavra encerra em si um mundo 



174 PORTUGUEZES E INGLEZES 

d'illu83e8 e de realidade, auroras e trevas, o palpável e o 
invisível. 

Esta simples palavra tem a immensidade do desconhe- 
cido — é o futuro ! 

Ninguém o percebe nem o pôde traduzir n'aquelle mo- 
mento solemne, sente-o a alma, entende-o o coraç3Lo e tre- 
me a voz. 

Finda a ceremonia sahiram da igreja. 

Planeou-se um banquete em honra dos noivos, mas 
n'aquella colónia tudo era uma familia, e nao podia haver 
exclusivos de convite. 

Assentaram festejar a boda ao ar livre. 

Perante a immensidade do espaço e debaixo do docel 
do ceu, manifestava a colónia da Machona a grandeza do 
seu affecto pela princeza e pelo tenente. 

No meio da alegria geral, e da satisfação de todos, ha* 
via um homem apenas inquieto ; e o observador que o en- 
carasse, já deveria ter visto uma ruga profunda franzir- 
Ihe a testa. 

Esta ruga ia augmentando á maneira que repeti- 
das ordenanças iam trazendo despachos dos fortes de 
Conji. 

Ninguém mesmo poderia calcular a importância das idas 
e vindas d^ordenanças, n'uma occasiSlo d'aquellas, mas 
deviam ser de pezo, para perturbarem o major. 

O banquete analisou alegre e feliz, como tinha princi- 
piado. 

A princeza e Alberto Carlos retiraram-se ao palacete 
construido de propósito para elles, acompanhados das bên- 
çãos dos seus amigos. 

Apenas o major via que o formoso par estava recolhido, 



.^Am 



EM'AFRICA 175 



-y- 



transformou-se completamente ; passou de homem de sala, 
de homem de sociedade, para o verdadeiro soldado. 

O sorriso desappareceu-lhe, a fronte, carregou-se e as 
suas ordens foram dadas com concisão e energia, como a 
vontade firme que as díctava. 

N'um momento estavam todos a postos, as trincheiras 
guarnecidas e as pequenas peças em bateria. 

Era tempo. 

As avançadas inglezás estavam próximas, a gente de 
Sir Mac-Leod e do Lo-Bengula vinha em massa atacar a 
colónia da Luzitania ! 

Para esto desacato tinham tomado por pretexto uma 
futilidade ! 

O verdadeiro motivo era a cubica das minas d'ouro e 
de diamantes que existiam em Conji e na Luzitania ! 

A noite seguida a este dia de festa foi uma noite d'an* 
gustia e de receios. 

Só dois entes estavam longe d^aquelies temores e de to- 
das as preoccupaçoes, eram os noivos, que ainda nao sa- 
biam que ao despontar do dia de núpcias, ao levantarem- 
se do seu leito d^amor, vinham encontrar-se : 

Cercados ! 



Sir Mac-Leod mandou um emissário ao major Sotto- 
Maior com o seu ultimatum. 

Transcrevemol-o tia integra, porque documentos d'esta 
ordem, perdem o melhor sendo extractados, e assim se 
avalia bem a soberba, a perfídia, e a malvadez d'aquel- 
les que se apossam do mundo com o direito da força do 
mais forte. 



Dl.»» SrT 

Tendo a comp-inliia ingleza da Machonoiandui accorda- 
do com o poderoso rei doa Mateboles, na forma de regu- 
lar os seus interesses com os interesses d'este potentado, 
e conhece D do 'ãe que a área em que está estabelecida a 
chamada Luzitania, e o monte de Conjí, 6 território qao 
pertence ao mesmo rei Lo-Bengula, e de que V. S." se 
apossou contra a vontade dos povos abi residentes, e sem 
auctorisaçílo do seu directo senhorio, o que pelo mesmo 
me é aãan^do, communioo a V. S.^ o seguinte : 

1." — A companhia ingleza da Mochonolandia tomou de 
arrendamento todos os terrenos na área coniprehendída 
entre o parallelo 22" e IS" de latitude aul v os graus 27" 
e 32^ de longitude do merediano inglez ; arrendamento 

eate que desde já está em vigor. 

2." — Em vista do referido arrendamento, a companhia 
ingleza convida a companhia portugueza a evacuar no pra- ' 
zo de vinte e quatro horas todos esses terrenos, e conce- 
ãe-lha levar os objectos de seu uso, apezar de adquiridos 
á custa de bens que só pertenciam ao Lo-Bongula. 

3." — A companhia ingleza tomará conta de todas aa 
casas feitas pela companhia portugueza, sem indemnisa- 
ção, visto que essas casas foram construídas com o pro- 
ducto das minas qne pertencem ao Lo-Bengula, e hoje 
são propriedade dos arrendatários, por noventa e novo 
annos. 

4."^ — Faz-3(! saber a V. S.^ que a compiuihia ingleza 



EM AFRICA 177 

empregará a força, caso haja resistência da sua parte, para 
que seja cumprido o contracto celebrado entre nós e o Lo- 
^Bengula. ' 

Estou certo que V. S.* pozará todas estas considera- 
ções como merecem. 

Esperamos as suas ordens. 

Deus guarde os preciosos dias de V. S.* 

Acampamento no Machona, 24 de março de 1891. 

MaC'Leod, 

Sotto-Maior reuniu conselho e leu^lhe a atrevida men- 
sagem do inglez e perguntou o que se havia de fazer. 
Todos a uma só voz disseram — re*sistir até á morte. 

m 

O major respondeu a Sir Mac-Leod : 

111.°»^ Sr. 

Os territórios que occupo foram cedidos pelo impera- 
dor Monomotapá aos portuguezes em 1 d'agosto de 1607. 

Tomei conta d'elles, com o consentimento do meu go"- 
verno e com o accordo da rainha Mangira, a única que 
pela occupação de muitos annos tinha n'elles algum di- 
reito. 

Kem vós, nem o Lo-Bengula teem cousa alguma que 
vôr com estes terrenos. 

Eatabeleci uma colónia, arvorei a bandeira portugueza 
e estou legalmente da posse doesta terra ; por todos estes 
motivos considero as vossas pretensões um attentado ao 
direito das gentes. 



17a PORTUGUEZES E INGLEZES 

Ameaçaes-me côm a força. 

Podeis empregal-a, estou prompto a repellíl-a. 

O mundo nos julgará. 

Deus guarde os preciosos dias de V. S.^ 

Luzitania, capital da Machona, 24 de março de 1891. 

J. A. de Sotto-Maior. 

Sir Mac-Leod mandou preparar para o combate. 

Será bom para melhor comprehensão do leitor, fazer 
um croquis do terreno onde se vão dar grandes aconteci- 
mentos, e uma resenha das forças inglezas e portaguezas. 

Os portuguezes occupavam a cidade da Luzitania, edi- 
ficada no pequeno outeiro Uncueque. ^ 

A cidade pouco mais tinha que a área de quatro kilo- 
metros quadrados. 

Do lado de leste era toda defendida pelo rio Uncueque, 
de grande profundidade e de trinta metros de largura media. 

A margem direita doeste rio desde a sua nascente em 
Musigaguva até á conflaencia com o Sebaqué, tinha sido 
completamente despida do arvoredo, o que não acontecia 
na margem opposta, ficando a cidade com uma boa defeza 
de sebes vivas d'aqueUe lado. 

Desde a cidade até ao rio Inconcuesi, uma das defen- 
sas naturaes de Conji e do Mochena havia um caminho 
coberto, com trincheira d'um lado e outro, fosso bastante 
largo, abatizes, e diversos reductos. 

Esta ligação do sul com o monte Mochena punha a Lu- 
zitania a coberto d' um ataque serio por este lado e pelo 
leste e oeste. 

O verdadeiro ponto fraco era o norte. 



EM AFRICA 179 

Aquellç lado da cidade assentava n'uma meia encosta 
de pouca ele vaçSo, que se espraiava por um bello e ex- 
tenso campo. 

O major tinha mandado construir ali uma linha inter- 
rompida de trincheiras abrigos, com revestimentos, ç o 
campo do lado exterior estava cheio de obstáculos, como 
estrepeis, covas de lobo, e redes d'arame. 

O monte de Mochena tinha uma metralhadora montada 
n'um pequeno reducto, que enfiava os seus fogos com os 
d'um pequeno canhão revolver d'outro reducto, o reducto 
José £stevâo, onde estava arvorada a bandeira portugueza. 

Além de todas estas defezas, foram levantadas barrica- 
das nas entradas das ruas norte sul, para proteger uma 
retirada ou para melhor defeza. 

O Mochena e Conji, que dominavam todo o terreno em 
volta, n'um raio que se limitava pelo horisonte, estavam 
cercados de dois rios com as margens guarnecidas de aba- 
tizes, trincheiras de terra e reductos. 

Além de tudo isto havia pontos completamente inacces- 
iBÍveis ao atacante, e que estavam, nSo só defendidos pela 
natureza, como defendidos por obras accessorias. 

O major dispunha de mil e quinhentos europeus, três 
mil pretos, duas mil Kropatschek e trez mil espingardas 
de diversos systemas, sendo algumas d'ellas de pederneira 
e de carregamento pela bocca. 

Tinha também a seguinte artilheria : quatro metralha- 
doras, dois canhões revolver, e trez peças de calibre trez, 
de bronze, ainda da expedição de Diogo SimSes Madeira, 
mas que estavam muito bem conservadas. 

Os inglezes dispunham de cinco mil homens, brancos e 
pretos, armados de espingardas de carregar pela culatra, 
vinte mil homens do exercito de Lo-Bengula com differen- 



i 



180 PORTUGUEZES E INGLEZES 



.1 



tes armamentos, desde a azagaia e a comprida lazzarina 
até ás armas de carregamento rápido, de seis canhSes 
rewolver e oito peças Krupp, de calibre nove. 

Se por um lado os inglezes tinham a vantagem do nu- v 
mero e da artilheria, pela parte dos portuguezes havia a 
grande vantagem da posição. 

Taes eram as forças que iam medir-se no memorável 
dia 24 de março de 1891. 

A's nove horas da manhã estavam os inglezes em posi- 
ção e iam principiar o ataque. 

Não queremos, nem podemos entrar na apreciação does- 
te acontecimento. 

Os governos portuguez e inglez continuavam nas me- 
lhores relações ; elles para nós eram os nossos fieis aUia- 
dos, a gente para elles é que não sabiamos bem o que 
éramos ! 

Oh ! se o não sabiamos, sentia-o o coração do povo, mas 
não o dizia, como desejava, porque, no Tejo estavam an- 
coradas umas pobres canhoneiras, e um triste couraçado, 
e as fortalezas estavam desguarnecidas, e u'outro3 pontos 
nem fortalezas havia, ou se existiam, eram um obstáculo 
irrisório ás balas da artilheria moderna. 

O exercito não tinha soldados, as reservas figuravam no 
papel, e. . . calamo-nos, pela honra nacional. 

Era verdade que, nos postos de major, caj^tão e subal- 
terno havia muitas intelligencias, muitas aptidões, mas 
tudo isso estava inutilisado pelo meio, o maldito meio. 

O qne se deu na Luzitania, deu-se em Massi-Kesse, e 
todos sabem que depois da companhia Sout African se 
apoderar das casas e dos haveres da companhia de Mo- 
çambique, e as forças de Caldas Xavier irem ás mãos com 
as forças dos inglezes, tudo ficou como d'antes ! 



? 



EM AFRICA 181 



~^'ita^N^Ny\y w/*»^*^/"^/".- 



Oa tratados pozeram termo a todos estes acontecimen- 
tos! 

E BÓ Deus do alto do seu poder poderá dizer se fizeram 
bem ou mal, e a posteridade e a historia julgará os actos 
da actualidade ! 

Nós pygmcus insignificantes, relatamos, mas n^o jul- 
gamos. 

Oa inglezes sabiam que o ponto norte era o lado vulne- 
rável da Luzitania e para ali dirigiram os seus esforyos. 

Mil e tantos infantes escalonados em atiradores, apoios 
e reserva atacaram as linhas do norte. 

A artilheria procurava arrasar as obras de de^eza e as 
casaa da cidade. 

A gente do Lo-Bengula pretendeu por mais d'uma vez 
atacar e tomar um reducto de Conji á borda do rio In- 
concuesi, chave da ponte entre o monte e o caminho co- 
berto. 

Se a defeza era encarniçada, o ataque nlo o era me- 
nos. 

A athmosphera estava envolvida em nuvens de pólvora, 
00 relâmpagos que saiam das boccas das espingardas e das 
peças de artilheria, cruzavam-se no ar e semeavam a me- 
tralha, ò ferro, o fogo e a morte por todos os lados. 

Respirava-se um ambiente de sangue que embriagava e 
enlouquecia. 

O dia já ia adiantado bastante quando os inglezes man- 
daram suspender o combate e proceder á retirada para 
longe da zona efficaz dos fogos da Luzitania e de Conji. 

Então, quando o fumo se dissipou e os olhos poderam 

vêr, é que o espectáculo hediondo da morte, d'aquelles 

que se estorciam nas convulsSes da agonia por entre os 

cadáveres inanimados dos que já tinham tido a felicidade 

12 



du morrer, se patenteou com todo o horror da sua 
barbaridade. 

O campo doa ioglezes e dos Matebebs estava juncado 
de cadavorea, o dentro das obras de dcfeza da Luzitairift 
o numero de mortos e de feridos era relativamente pe- 
queno. 

N'aquelle dia, officiaes, soldados e paisanos, ttnluiit 
obrado prodígios de valor, o ató aa mulheres concorrerun 
com a sua coragem para animar e ajuilar os combatentes. 

O dia seguinte foi dia de deacanao. 

Oa inglezes percebendo que não podiam tomar a LubÍ* 
tania aaaim de repente, accordaram em estabelecer um 
cerco em regra, e trataram de levantar linhas de trinchei- 
ras em volta da posição doa portugueaes. 

O major vendo isso procurou cora a aua pequena arti- 
Iheria destruir esse trabalho, mas pouco dam%o fazia aos 
sapadores n'elle empregados. 

O major tentou uma sortida. 

Foi nomeado o capitão Estrella para a commandar. 

O capitílo e os trezentoa homens que o acompanharam, 
obraram prodígios de valor, mas pouco conaeguíram para 
o reaultado que se desejava, . 

Assim SC passaram una poucos de dias, quando uma 
noite, pelaa trez horas, soou um tremendo estampido ; era 
uma mina que rebentara mesmo por debaixo das primei- 
ras casas do lado norte. 

Una edifícios tremeram na sua baae, e cabiram cum 
grande estrondo, outros voaram pelos arca. 

A guarniçSo que ali estava desapparcceu no espaço en- 
volta com oa doatroços daa pedras, dos telhados, das por- 
tas, doa aolhoa o da mobilia. 

Foi um vomito de guellae de monstro, que arx 



EM AFRICA 183 

ao abysmo da eternidade os destroços humanos dos de' 
fensores. 

Bocados de pernas, de braços, de oabeças e de tronoos, 
foram entulhar as ruas e destruir os telhados da Luzi- 
tania! 

Ainda a gente do major não cobrara alento do terrí- 
vel sinistro, e já Uma avalanche dos homens de Sir Mac- 
Leod tinha invadido a cidade pela brecha. 

A resistência foi mais que heróica, foi sobre humana ; 
cada casa era uma nova fortaleza, e os seus defensores só 
cessavam o fogo, quando já não tinham vida. 

Os portugnezes iam pouco a pouco cedendo terreno ; a 
cidade ia-se desmoronando lentamente. 

Por onde oorria o sopro da morte dos homens, ia o tu- 
fão que derrubava os objectos. 

E tudo isto se passava nas trevas da noite, ou á luz 
pailída e sinistra das fogueiras das casas que ardiam ! 

Quando os raios da aurora prindpiavam a dourar os 
cumes dos montes e as franças das arvores, a bella cidade 
da Luzítania era um montSLo de ruinas que fumegavam, e 
am acervo de seres humanos desfacelados, que tinham 
sido homens ! 

A lucta concentrou-se na ponte. 

Vurn. lado, percebiam que a suprema defeza estava em 
retirar por ella os últimos combatentes da cidade, e do ou- 
tro adivinhava-se o esforço qne os portuguezes faziam em 
conservar a ponte. 

Era ali que estava ou o remate da lucta, ou indecisSo 
da victoria. 

O fim e a esperança ! 

Os portuguezes iam cedendo cada vez mais o terreno e 
rareando as fileiras, ou porque se internavam em Conji, ou 



184 PORTUGUEZES E INGLEZES 

porque cabiam varados pelas balas inglezas, ou atrevessa- 
dos pelas azagaias e tiros dos Matebeles. 

Conforme os inglezes avançavam, recuavam os nosaos! 

A um signal do major todos os seus abandonaram a 
ponte e fugiram precipitadamente. 

Então, seinelbante ao rugir d'um vulcão quando a cra- 
tera está prestes a estalar e rebenta por fim, arrojando 
a lava, as escorias e o turbilhão encandescente, assim se 
ouviu e viu n'aquelle momento a ponte oscillar nos seus 
alicerces de pedra, e rápida como uma granada que vence 
a trajectória, voar pelos ares, engulindo, na sua voragem 
immensa, os inglezes ! ! 

As aguas negras e profundas do rio abriram-se, traga- 
ram, sorveram e sepultaram para sempre os tristes que 
o acaso impellira para ali, e serenas, como o tempo, cor- 
reram novamente no seu largo e escavado leito ! 

Os inglezes não podiam anniquilar aquelle punhado de 
bravos que se refugiaram em Conji ! ! 

Cubicaram as minas, não as podiam explorar, porque a 
metralha e as balas dos nossos lhe faziam pagar com de- 
zenas de vidas cada gramma d'oiro ! 

Desejavam possuir a cidade da Luzitania, estavam de 
posse d'um montão de ruinas ! 

Ambicionavam Conji e Mochena, e ficaram sepultados 
no Inconcuesi! 

Tiveram inveja que os portuguezes occupassem Macho- 
na, bateram-os, fízeram-lhes uma guerra atroz e sem pre- 
cedente ; tinham o terreno juncado de cadáveres dos seus 
e dos Matebeles ! 

Nem as balas, nem as minas, nem o numero, nem o 
cansaço podiam vencer a gente do major. 

Resolveram então rendel-os pela fome ! 



EM AFRICA 186 

O monte de Mochena foi cercado por tal forma com re- 
forços novos, que impossível era tentar uma sortida. 

Assim se iam passando os dias. 

Os cercados reduziam o mais possivel os viveres, mas 
a fome, a terrivel fome, já se Fazia sentir, porém ninguém 
pensava em se render, e jamais se entregaria. 

NSLo era n*aquellas paragens e com a gente do major 
Sotto Maior que a bandeira portugueza seria arriada por 
cobardia, ou por capitulação. 

Ali estavam os restos dos antigos portuguezes ! ! 

Ali estavam os depositários da honra nacional ! 



I 



VI 



PiSSiGEM iOS VENCIDOS 

Três mezea de heróica resistência eram passados. 

No alto do reducto José Estevão tremulava ainda a rota 
bandeira das quinas. 

A fomOi a miséria, as privaç3es e a fadiga eram impo- 
tentes para abater aquellas almas vigorosas, rijas e sublimes. 

Aquelles corações d'alto quilate, grandes, nobres e va- 
lorosos, n^o se deixavam vencer. 

Do alto do seu Golgotha, próximo dos céus despreza- 
vam esse bando d'inglezes que rugiam a seus pés I 

Pygmeus que rastejavam pelo chão como vermes e ser- 
pentes, envoltos na sua baba peçonhenta, avinhada e as- 
querosa 1 

No reducto José Estevão, e em todo o Monte Mochena, 
já não havia um cartucho ! 

Os echos das montanhas e dos valles já não repercutiam 
o som TOUCO e retubante do canhão. 

A voz stridente e sibyllina da fusilaria tinha emmudecidol 

As gargantas de ferro e d'aço das metralhadoras eatA- 
vam seccas I " * 



Silencio sepuloliral, tetricn, medonho e frio de toda ii 
natureza ! 

Kem ura bafo alegro o rlaonlio passava na crUta das ro- 

Os heroiooa dafansorcs de Mouhona arrastavam- se es- 
<)UatLdo9, cadavéricos e famintos, de trincheira em trin- 
olieira, de parapeito em parapeito. 

Oh B6UB ulhoa brílhantea pela febre, encovados e utimí- 
dos pela vigília e pela fadiga íitavam ae no horisonte. 
Diaa e dias decorridos, e nem um aoccorro ! 
A esperança que lhes alimentava a alma, c a desilluBÍlo 
que lhes dilacerava a existência, eram ainda oa doia gla- 
diadores que os amparavam ! 

Cercados por todos os lados, encurralados pelas feras 
que OB tinham vencido pelo numero, o major o os seus es- 
peravam ! 

Estavam reduzidos ao ultimo extremo. 
Já nna tinham piio, já dSo tinbam carne, já não tinham 
legumes, já não tinbam agua, já uHo tinham cousa alguma. 
kSú lhes restava para beber, o rocio do cacimbo depnsi- 
) das rochaa, decomposto pelo calor ! 
Bd lhes reatava para comer, aa raízes mirradas que ar- 
Kavam do subsolo ! 

pó lhes restava, a esperança em Deus !l 
J^o longe, muito ao longe, do lado do oceano indico, 
Mreceu por fira uma ténue nuvomzinha de poeira. 
ps olhos esgaaiadoB dos defensores do Mochena virara-n'a. 
1 frémito dalegria correu um momento por aquellea 
moB alquebrados. 

L esperança trouxe aos lábios d'aquelles martyres o sor- 
i doa. anjos I 
^uct) a pouco, a nuvem tomou corpo. 



188 PORTUGUEZES E INGLEZES 



«• 



Vinte homens apenas, precediam um official com a es- 
pada levantada e nua. 

Na ponta d'essa espada não vinha a redempção^ a liber- 
dade, o desforço, o desaggravo. 

Na ponta d'essa espada agita va-se uma bandeira branca ! 

Bandeira do parlamentario que pede tréguas para en- 
terrar os mortos, ou traz as clausulas dilacerantes d'uma 
capitulação ! ! 

Os esforçados defensores de Mochena ainda tiveram a 
duvida. 

Era mais uma angustia que tinham a sofrer ! 

O oí&cial e a sua escolta caminhavam cabisbaixos, co- 
mo o condemnado para o supplicio I 

Não ousavam erguer os seus olhos para o cimo do Mon- 
te onde estava arvorada a sacrosanta bandeira da pátria ! 
Eram os emissários da morte, que vinham buscar aquel- 
les cadáveres para lhes dar sepultura á borda 'do oceano, 
único cemitério christão e catholico que restava aos por- 
tuguezes na Africa ! ! 

Caminhavam avergados ao peso da dor e da vergonha. 

Percorriam aquelle caminho empurrados pelo cumpri- 
mento do dever de soldado ; regavam-n'o, comtudo, com ' 
as suas lagrimas d^homens e de portuguezes ! « 

O official chegou junto do primeiro posto inglez e os 
soldados êzeram alto sem voz de commando ! 

O mesmo frémito d'asco e de repulsão fizera-os estacar, 
como o nobre corcel que se abeira d'um monturo, ou pisa 
um cadáver em putrefacção ! 

O official embainhou a espada e seguiu só, atraz d'um 
guia atravez do acampamento inglez. 

Sir Mac-Leod esperava-o tremulo de phrenesi na soa 
barraca de campanha^ 



EM AFRICA 189 

O oíBcial tirou do peito um officio e entregou-Ih'o. 

A seu pezar, duas grossas lagrimas se lhes desprenderam 
dos olhos, e, correndo como chumbo derretido pelas suas 
faces cavadas, foram cair no officio. 

Eram o ultimo protesto da dor que lhe despedaçava o 
coração ! 

Em quanto Sir Mac-Leod devorava uma a uma as linhas 
do officio que continha o tratado de 28 de maio de 1891 (*) 
em que os portuguezes ficavam reduzidos a uma faxa da 
costai — o official mordia os beiços até fazer sangue, para 
não deixar explosir a sua afflicçâo ! 

Sir Mac-Leod ainda tinha um resto de humanidade n'a- 
quella alma de cannibal. 

E n'aquelle momento comprehendeu aquella nobre dor. 

Tocado d'um sentimento raro n'elle, disse ao official: 

— Podeis ir ter com os bravos defensores de Mochena, 
e dizer-lhes, senhor, que teem três dias para evacuar o Mon- 
te ;. teem todas as honras de guerra ; que podem levar tu- 
do o que lhes pertence ; e que Sir Mac-Leod e os seus se 
curvam perante os heróicos vencidos ! 

— Vencidos, não retorquiu-lhe o official, — obrigados por 
ordem do governo a abandonar o território hojeinglez, sim. 

— Ciomo queiraes, senhor; — foram as ultimas palavras 
de Sir Mac-Leod. 

Do alto do Monte comtemplavam estáticos e mudos os 
movimentos do acampamento inglez. 

Aquelles heróicos sitiados iam comprehendendo alguma 
coisa dolorida e triste, pelo frio e sinistro semblante da 
escolta. 

O official portuguez subia lentamente a alta penedia. 

(1) Vide — O tratado — nota 8. » 



A poucos passos parava e enchia ob pulmSes do ar maia 
puro daa alturas. 

HHo ora o cansaço phiaico qun o detinha, era a afflicçílo 
da sua alma e da aua consciência que Uie paralisava os 
movimentos. 

Elle, que já tinha vertido o seu sangue em pranto, pe- 
la pátria perdida e espeainhada, ia, forçado mensageiro de 
máa novas, dizer áquellea estrénuos defensores da bandei- 
ra portugueza: — ^ubondonae, irmilos, essa terra santificada 
pelo voHso sangue e pela vossa coragem ease terre- 
no é já inglez!! 

E comtudo aquelle nobre officíal avançava, os pustoa 
por onda passava faziam-lhe continência, e elle lá ia do 
cumprimento da sua penosa missão ! 

à ponoos paesoa achon-se na frente do major Sotto Maior : 
já não poude maiB: n'um abraço fremente, epiletioo, ea- 
treiton-o d'encontro ao peito ! 

As snaa lagrimas correram á vontade, o sen soluçar trans- 
bordou livre com o pranto ! 

O major, o os seus, comprebeoderam então toda a ver- 
dade do seu infortúnio I 

Sublimas na desventura, como horoicoa tinham aido nos 
combates e na defeza, não tiveram um ai, um lamento, 
um queixume ! ! 

N'aquello mesmo dia^a sobrevivente povoação de Conji, 
c os restos da expedição, evacuaram o Monte. 

Aqwellaa sombraa de homens e ^e mulheroa desceram a 
encosta da montanha; a fome e a febre aasemolhava-oa 
a cadáveres sabidos das sepulturas ! 

for um resto d'humanidade, os inglezes, que a seu pe- 
zar «a admiravam, estenderam -lhes aa mãos com appeti- 
tosii comida. 



EM AFRICA 191 

Magelina, filha de Conji e Machona parou, fitou-os com 
um soberano desdém, e, com voz cavernosa, como a do 
castigo, gritou-Ihes: — Logar aos vencidos!/ 

Osi nglezes recuaram de medo, d'espanto e de horror, 
áquelle aspecto mortal I 

Os soldados de Sir Mac-Leod apresentaram ent^o as 
armas, os tambores rufaram, e o resto d'aquella plêiade 
d^heroes, passou. 



VII 



CONCLUSÃO 

Nas abas da serra Tabuca o major e os seus pararam. 

Já nlo avistavam o acampamento inglez, nem até elles 
chegava o som do seu vozear. 

Os indigenas cercaram-n'os por todos os lados, oifertan- 
do-lhes o melhor das suas vitualhas. 

Os famintos viram-se então fartos. 

Grande quantidade de arroz, de batata doce, farinha de 
mandioca e milho painço foi posta a coser. 

O leite, as bananas, as massarocas assadas, o inhamcr, o 
pombé e o maramba, reanimaram os mais exangues e aba- 
tidos. 

Algumas cabras foram assadas inteiras. 

Não havia alegria n'este banquete ! 

Devoravam em silencio tal, que se sentia o moer dos 
maxilares. 

Os naturaes, antigos súbditos da rainha Mangira, que- 
riam dar-lhe consolação. 

Para aquelles que abandonavam para sempre a terra 



EM AFRICA 193 

^Ue os yíu nascer, esbulhados d'ella por estrangeiros, nao 
'^vU conforto nem lenitivo. 

Ha dores tsU) fortes e vivas, que o único bálsamo para 
ellas, são as lagrimas ! 

A Velha Mangira nem já esse allivio tinha ! 

O seu pranto convertóra-se em fel e descera ao cora< 
çSo! 

Só quando o seu espirito abandonasse o pobre e dila- 
cerado co^po por tantas provaç5es, é que a sua dor pode- 
ria ter refrigério. 

O major contou os sobreviventes d'aquella epopêa. 

Encontrou, entre brancos e pretos, homens, mulhsrcs 
e creanças, seiscentos e quarenta e dois. 

Era preciso assentar no problema do futuro. 

A vontade de todos era ficar juntos. 

Quem tanto tinha soffrido em commum, era justo que 
anhelasse por dias mais felizes passados em communidade. 

O major e os europeus estavam resolvidos a voltar a 
Lisboa. 

Queriam para sempre abandonar aquellas terras porque 
tanto tinham combatido e trabalhado. 

Queriam pôr entre ellas e elles essa immensidado dos 
mares, onde o tufão e o rugir da tempestade abafa a voz 
da humanidade. 

N'aquelle dia, cousa alguma se assentou de definitivo. 

Combinaram tratar do assumpto somente em território 
portuguez. 

Este, só o pisariam, na direcção que levavam, quando 
estivessem na margem esquerda do Save. 

O major dirigia-se directamente para o ponto da con- 
fluência do Save com o Stize, que se junta com o primei- 
ro no 19^ e 19' lat. sul. 



194 PORTUGUEZES E INGLEZES 



«.^N./ \^ .^\y \ ^ x-.-'_^> «"^ ^^ * X AS., -v •-. /■V.^ A^w^N J 



As jornadas tinham que ser curta?. 

De Tabuca ao Save havia a percorrer umas quarenta 
léguas. 

O paÍ2s era muito montanhoso, e os valles bastante en- 
charcados. 

Âs perdidas forças dos bravos de Mochena tinham que 
se ir refazendo a pouco e pouco. 

Nâo lhes faltava abundância de géneros alimenticios e 
de carne fresca, que os indigenas Ifíes fomecian^. 

Já perto do Save, ao atravessar o rio Sitse, a velha 
rainha Mangira sentiu-se muito mal. 

O medico fez-lhe rigorosa observação, e declarou ao 
major, que a rainha poucas horas teria de vida. 

O typho tinha-se declarado, complicado com optras ter- 
ríveis enfermidades, e a sciencia era impotente para as 
combater efficazmente. 

Na margem esquerda do rio a phalange dos desgraça- 
dos parou. 

A rainha Mangira foi cuidadosamente tratada á sombra 
de uma das barracas que a expedição levara ha annos da 
Europa. 

O typho apossara-se-lhe de todo o organismo e a morte 
não se fazia esperar. 

O capellão foi confortar aquólle espirito, que em pouoo 
tempo abandonaria o mirrado corpo da ultima rainha de 
Machona. 

A palavra do padre fez-lhe bem, Mangira recuperou am 
pouco a razão abalada ; chamou a filha, os seus fieis sécu- 
los e macetas, o major e os seus, e, despediu-se d^elles 
com breves e tocantes palavras. 

Chamou o seu primeiro ministro, e ordenou lhe que 



EM AFRICA 195 



. *■>* ■^/-*fc/' \. • 



mandasse condazir á sua presença as caixas que encerra- 
vam a sua bagagem. 

Entre ellas estavam vinte e um pequenos cofres de sân- 
dalo, feitos d^uma única peça e tapados d'uma forma tão 
engenhosa, que só quem possuisse o segredo os poderia 
abrir. 

A rainha chamou a filha e mandou os destapar um a 
um. 

Dentro d'elles brilhavam os diamantes, o ouro em pó, 
em barra e em pepitas. 

£ com voz que diligenciava tornar firme disse: «estes 
são 08 thesouros accumulados por meus pães e pelos meus 
avós, que deveriam passar de geração cm geração no rei- * 
no de Machona. 

cO reino já não existe. 

<0 thesouro vae-se dividir pelos filhos fieis dos descen- 
dentes dos nossos maiores.» 

Voltando-se para o major disse-lhe : aamigo leal, cha- 
ma quem escreva, quero que o que vou dizer fique es- 
cripto.» 

E, com voz lenta continuou : «é da minha soberana e 
ultima vontade, que, os thesouros encerrados n'aquelles 
cofres, últimos restos da opulência d'uma soberania que 
desappareceu para sempre da terra, sejam repartidos pela 
seguinte forma : — metade para minha filha, a princeza 
Magelina Júlia de Saldanha, conhecida pela Sambi, a filha 
de Congi e Machona ; outra metade será dividida em três 
partes; uma para o valente major Sotto-Maior, que nos 
salvou a vida por di£ferentes vezes, e em transes bem 
difficeis ; outra para os brancos sobreviventes da expedi- 
ção ; e a outra para todos os meus súbditos fieis que me 
acompanham.» 



196 ' PORTUGUEZES E INGLEZES 

«E agora, adeus amigos até ao juízo íioal ; peço -lhes 
que me deixem com minha filha e meu genro. :» 

Só o soluçar do pranto verdadeiro respondeu ao pe- 
dido da rainha, e um a um dos presentes foi ajoelhar 
ao pé d'aquella nobre santa, que tanto tinha soíFrído, e 
beijando lhe pela ultima vez a mao, sahiram da tenda com 
passos vacilantes e lentos. 

D^ahi a pouco a poderosa rainha de Machona nao era 
mais que um cadáver frio e dessecado. 

A sua valente e nobre alma voara para os céus ! ! 

O corpo foi encerrado no concavo d'um tronco cerrado 
d'um formoso hao-hah, e aquelle caixão funerário foi con - 
duzido á mão até á fronteira das terras que tinham sido 
concedidas aos portuguezes ! 

Os últimos restos d'aquella que tão fiel nos tinha sido 
não podiam ficar sepultados em terra iugleza. 

Na margem esquerda do Save, defronte da confluência 
do Sitze, n'um montinho á entrada da povoação de Isi- 
bambeio por 19^ e 19' latitude sul e 32^*, 16 longitude 
Greenwich ficou erguido um tosco mausoléu de pedra 
bruta, ultimo tributo dbs amigos da extincta rainha de 
Machona ! 

Aquella cruz mortuária na e:^trema fronteira dos terre- 
nos que a cubica, a rapina, a má fé e a ladroeira dos in- 
glezes nos deixou pelo tratado de 28 de maio, arrancados 
á nossa miséria, á nossa impotência, desmaselo, somuo- 
lencia e cobardia, era o único marco que ficava da passa- 
gem dos heroes de Machona, e para os vindouros recor- 
dar que no anno de 1891, nos fins do século 19.°, não 
havia somente em Portugal poltrões ! ! 

Os restos do material que a expedição levara em tem- 



pn de Lisboa e que podia aer aproveitado no rogrosBo, 
tinha aidu condazidu pclus foragidos do Machona. 

Assim, o major achava-se de posse do seu exuellentu 
barca muchaníuo Vasco da Gama, de muitos escaleres de 
giUta-percka e do trem d' acampamento. 



Ninguém se queria separar. 

Em viata d'esla unanime vontade foi resoivido que fos- 
«em abatidas todas as arvores necessárias, cavadas con- 
vouien temei) te, e que com estes pequenos barcos so ten- 
taste a descida do Save até ao ocoauo indico, embarcando 
d'ali para Lictboa, onde cada um viveria á custa da regia 
herança da rainha Machona. 

O major que conhecia este rio pelaa desoripçSes dos sá- 
bios exploradores Erskíne e Wybranta e pelo que ouvira 
a alguns indígenas, que o haviam porcorrido, um ou ou- 
tro, deade a sua aascente, na serra Clntavatanga nas ter- 
ras de Quiasanga, até ás suas três b6ccas Macon, Indyan- 
dugo e Sedíka no canal de Moçambique, viu que, com 
algum trabalho era fácil a descida d'elle, a muito menos 
difHcil que uma jornada a pé atravoz d'uma extensão que 
ail em Unha recta media uns trezentos líilometros, ou sos- 
acBta leguai. 

A direcção das construcçSea navaee foí entregue ao te- 
nente Alberto Carlos, e tal foi a actividade desenvolvida 
por todos, que ao torceiro dia, os foragidos de Machona 
commodamcnte alojados em sessenta canoas indígenas, o 
noi barcos da antiga expedirão, navegaram ao sabor da 
corrente pelo tíavc abaixo. 



No di) 
que a Cl 



. 24 de julho de 1891, fazia exactamente annos 
pedirão sahira alegre e cheia de fó, d'eG3e Tejo 



prata, saudada por nailhareB de pessoas, embaicuva um 
(JhituaDe em dírecçlLo á Europa os rostoa da disimada e 
litiruitia phaUngB dos portuguezes que tanto tinham combu* 
tido por esees torrSe» africanos, que Foram a gloria dos 
noasoB antepassados e aSo hoje a ignominia da geraçSo 
actual ! I 

A chegada a Lisboa, d'ii8ta vez, do major Sotto-Maior, 
nSo tinha aquelle ar alegre c festivo, como quando ella 
viera organísar a Companhia Mineiía e Civilisadora de 
Machona. 

Nem oa navios embandeiraram em arco, nem ob minis- 
tros se fizeram representar. 

Somente a nobre e patriótica Sociedade de Geogrophia 
os foi esperar á barra, e n'um abraço fremente e dolorido 
disse mais, do que a aua bocca poderia dizer. 

Desde o desembarque em Belém, até ao edifício da Cor- 
doaria, que tinha sido posto á disposiçSo dos foragido» de 
Machona, o povo formava alas, todo vestido de prato^ 
como para um enterro. 

A formosa Magelina, a tilha de Machona, ora alvo dae 
maiores demonstraçiíeH de sympathia, demonstraçSea que 
nSo eram dadas com o ruido da alegria, mas uom as la- 
grimas dos que soffrem, e com us transportes doa que per- 
deram uma mSe querida. 



O major mesmo abatido e fraco, apenas tc^c um mo- 
mento de descauço fez o aeu relatório como director da 
companhia, e saldou com os seus associados as contas 
d'ella. 

Ãpezar de todas ostaâ vicitudes, a Companhia Mineira 
e CivUisadnra de Machona, ainda deu um bom reaaltado 
pecuniário. 



EM AFRICA 199 



Por esta oe^aisiSo estava á venda o antigo parque e pa- 
lácio do conde de Farrobo, conhecido pelo nome de Qain- 
ta das Larangeiras. 

Alberto Carlos comprou-o. 

Era á sombra d'aqaellas formosas arvores, e ao perfu- 
me d'aqtiella8 roseiras, que os dois temos esposos queriam 
recordar as florestas da querida pátria de Magelina, e fal- 
tar n&a entes queridos que ficaram sepultados n'e8sas re- 
gi8es longiquas, regadas pelo seu pranto e pelo seu sangue. 

O major Sotto-Maior foi viver com elles, e ali só com 
Deus e eom a sua consciência, abandonava-se muitas ve- 
zes a uma 'dor intima e mortal; de que era despertado pe- 
las doces palavras de D. Júlia e pelo carinho filial de Al- 
berto. 

Os sobreviventes da expedição e os machoanos que vie- 
ram para Lisboa, compraram bocados de terreno, ém Bem- 
fica. Luz, Carnide, Bellas e Lumiar, e cada um edificou 
nma casa conforme os seus gostos e recordaçSes, e • . . as- 
sim passariam- o resto da existência, até que a Parca im- 
placável 03 chamasse a contas. 

O major Sotto-Maior contaminado pelas febres africa- 
nas e roido pouco a pouco pelo desgosto de entregar aos 
inglezes o território em que tinha sonhado um império, 
estava gravemente doente. 

Todos os esforços da sciencia eram impotentes para sal- 
var aquelle condemnado. 

Os melhores médicos declararam que a medicina não 
tinha ali cousa alguma a fazer. 

A' beira d^aquelle cadáver é que a pátria sentia a sua 



200 . PORTUGUEZES E INGLEZES 

A' aproximação da morte, que roubava aquelle grande 
vulto, é que a convulsão soluçante dos portugueses, dizia 
o que soffria e o quanto o amava. 

Eram quatro horas da manhã. 

No palaaio das Larangeiras havia um silencio enorme. 

Serviçaes e amigos deslisavam pelos compridos corre- 
dores como sombras lúgubres! 

N'aquelle grande movimento, sem bulha, sem som, 
n^aquelle repassar sinistro, adivinhavase alguma cousa 
extraordinária, terrível, fatal ! 

Da alcova do major tinha sabido ha pouco o padre. 

Os últimos confortos da religião tinham ido dulcifícar 
aquelle espirito ! 

D'um lado e outro da cama estavam os dois jovens ami- 
gos do major. 

Ânbelantes e suspensos espreitavam os movimentos 
d'aquelle que tanto amavam ! ! 

D. Júlia e Alberto Carlos tinham as lagrimas estanca- 
das ; os seus corações não se sentiam já bater ! ! 

O mesmo abraço da morte queria enlear os três ! 

Ia amanhecer. 

Uma ténue claridade baça^e amarella filtrava- se pelas 
fendas das janellas. 

A luz da alampada mortuária sumia-se aos alvores da 
madrugada. 

O major Sotto -Maior estendeu a sua mirrada e hirta 
mão á procura d' um amparo. 

Magelina e Alberto apertaram -lh'a entre as suas. 

O moribundo fez um supremo esforço. 

O seu corpo devorado pela febre ergueu-se no leito. 

Oíí aeus olhos abrir^m-sc desmesuradamente, e fitaram- 



EM AFRICA 201 

se com amor e carinho nos dois amigos que o ampara- 
vam. 

Depois volveu-os a custo para o céu, e d^envolta com o 
nltimo suspiro da vida que se esvaía, murmurou : — Meu 
Deus, velai por elles e pela pátria moribunda ! 

O major Sotto-Maior já nllo era do numero dos vivos. 

A sua alma pura, leal e heróica tinha voado até junto 
d^^Aquelle, que lá das alturas preside aos destinos dos 
mundos. 

A naçSo portuguesa estava de lucto. 
O funéreo ataúde encerrava mais um heroe do conti- 
nente negro. 



FIM 



NOTAS 



DOCUMENTOS 



ONDE iSSEMTi A BASE HISTÓRICA DOESTE. LIYBO 



NOTA N.« 1 
Tratado com o Imperador de Monomotapi (*) 

Áo 1.^ d'ag08to da era de 1607, estando o imperador 
Manamotapá em campo ao longo de um rio que se chama 
Mansovo, ou Mazoe, de fronte de umas povoaçSes, a saber, 
uma que se chama o Marenga, e outra Inhamacoto, Diogo 
SimSes Madeira, capitSo da guerra, que reio em favor do 
dito imperador Manamotapá, tratou no mesmo dia acima 
declarado algumas cousas de importância ao serviço de 
Deus e de Sua Magestade, como ji o tinha feito por mui- 
tas vezes, e alcançou, com razSes que deu ao dito impe- 
rador Manamotapá, que desse a Sua Magestade todas as 
minas de oiro, cobre e ferro, estanho e chumbo, que em 
todo o seu império houvesse, o que o dito imperador con- 
cedeu assim e da maneira que por Diogo SimSes Madei- 
ra, capitão da guerra, lhe foi pedido ; e logo disse a elle 

(>) Também se escreve Manamotapá, Monomatapa, Bene-Motapa, 
Bene Motasha e Mono-Mataha. 



o dito Diogo Sim3eB Madeira, capitilo, em 
mim, escrivão, que trouxesse comsigo todos os portugue- 
zea qua comsigo tinha, que em presença d'elleB todos que- 
ria dnr a Sua Magestade as minas que lhe pedia, e logu do 
mesmo dia, mez e era acima declarados, maaduu o dito 
capitão m<ir tanger tsml>or oom pregão, que dizia que to- 
da a pessoa de qualquer condição que fosse o acompanhas- 
se, porque queria ir com todos diante do imperador Ma- 
namotaJ>A, porque cumpria assim ao serviço de Sua Ma- 
geatade. Mandou a mim, escrivão, que fizesse este termo, 
e dou minha fé tudo acima passar na verdade por a tudo 
estar presente, e em fé do qual me asaiguei aqui, como 
dito capitão, em este campo do imperador Manamotapá no 
mesmo dia e era acima declarados. E eu Miguel Nunes, 
encrivSo, que o escrevi, e me aasignei de meu signal raao 
e acostumado, que tal é como se vê. 

E logo DO mesmo dia, Diogo SimSes Madeira, capitão da 
guerra, ae foi ter aoa paços do dito imperador Manamota- 
pá com todos oa portuguezes que estavam na sua compa- 
nhia, e disae ao imperador Manamotapá que ali estavam 
todoa 08 portuguezea, em preaença doa quaea podia diser 
o que com elle dito Diogo Simões Madeira, capitão da guer- 
ra, tinha assentado, e logo o dito imperador, em preaen^-a 
de todos, disse o quo se segue. 

iBu imperador Manamotapá, bei por bem e me apraz 
idar a Sua Magestade todas as minas de oiro, cobre, fer- 
oro, chumba e estanha que houver em todo o meu impe- 
• rio, comtautoque £!-rei de Portugal, a quem dou as dl- 
iitaa minas, me conserve em meu Estado, qne eu possa pôr 
ve díej>ôr, e assim e da maneira que até agora o fis, e fize- 
aram os meus antepassados ; e qne Sua Magestade me dS 
oguurra para me ir metter de posse em minha curte, e dea- 



EU JUnOCA' 

■oir um ladrSo alevantado por aome Matiizíaahe, que tem 
4 roubado algumas terras de oiro, e impede oa resgates das 
dfazenda dos mercadores. b 

E as9Ím diaae mais eil<; dito imperador que pedia a Sua 
MageBtade o aoceitaase por sou irmSo em armaa, e que aTm 
mandava os aeua embaixadores logo, pelas muitas occupa- 
{Ses que tioha aa guerra, mas que pedia a Diogo SimSea 
Madeira, capitão da guerra, que escrevesse ao vice-rei da 
índia, e ibe désae conta de tudo o que ae paaaava, para 
qufl lhe mandasse alguma geute para a eonaerração do seu 
império, e assim lhe mandasse um par de cavatlos para elle 
dito imperador andar n'ellee, e para o anno, Deus quercn 
do, entregaria a Diogo SimSea Madeira, capitão, u princi- 
pe seu ãlbo, e Samangana seu embaixador, para o levar 
ao vice-rei da Índia com sua embaixada. 

K outro sim disse o imperador Manamotapi, em presen- 
ça do dito Diogo SimSea Madeira e do» mais portugiiezes 
que presentea estavam, que elle dava a seu filho príncipe, 
para o levar á índia em companhia do embaixador Saman- 
gana, para conãrmação de tudo aquillo que com elle dito 
Diogo Sim5es Madeira, capitS.o, tinha assentado e estava 
Q'esta eacríptura. 

E assim disse mais elle dito imperador, em presença de 
todos, que elle tinha dado dois filhos para oa ensinar e elle 
09 ter em aua caaa, e assim lhe tinha promettido duaa iilhaa ; 
e disso em preaença de todos, que uns e outros, elle dito 
Diogo Simões Madeira oa podia fazer christltos, porque 
d'jsso era elle dito imperador contente. 

E Diogo SimSea Madeira, capitSo da guerra, tratando 
uu dito imperador acerca das minsa do prata, lhe respon- 
deu em preaença de todos:— As miuaa de prata, eu vol- 
as tenho dadas pelos muitus serviços que me tendes feito 



cm mishae gaerras ; vós aa podeis du, se quizerdea a Sua 
Magestade, pois bSo voesas e vol-as tenho dadaa. — E logo 
o dito Diogo SimtÍGs Madstra lhe respondeu ao dito impe- 
rador, em presença de todos, qae pnis as minas de prata 
lh'aB tinha dadas, <)ue elle dito Diogo SirnSes largava aa 
ditas minaa e aa dava a Sua Magestade, pois por elle as 
pediu e grangeoa como aeu vassallo. E logo pelo díto im- 
perador foi dito a SimSes Madeira que de tudo que ellc 
dizia publicamente mandasse fazer papeia, que olle dito 
imperador Manam o tapa se assignaria n'elles. E perguntan- 
do-Ihe o dito Diogo SimSes Madeira, capítulo, o aignal que 
havia de £izer, poia mio sabia ler nem escrever, em pre- 
sença de todos disse: — Farei assim, e fez três cruzes no 
chito com a própria mão e disse: — Este é meu signat. — 
E diase elle imperador que o que elle dava o promettia a 
Sua Magestade, protestava cumprir, guardar e manter, e 
que nenhum tempo podease quebrar o uonteudo n'eata 68- 
criptura ; e que elle imperador o queria aaaim e mandava 
e ordenava, e tudo era contente. Em fé do qual se aasi- 
gnaram aqui oom o dito Diogo Simões Madeira, capitão 
da guerra, e com aa testemunhas que presentes estavam, 
íiH qnaes sSo as que se seguem : frei Jnão Lobo, vigário 
lia egreja de Luauze, e o padre frei Manoel de S. Vicen- 
te, vigário e aasístente n'e8ta guerra e campo do impera- 
dor Manamotapá, Estevão Moreira, Francisco Gago, Fran- 
cisco Madeira, FernSo Rodrigues, Manuel Borges, Domin- 
gos Cardoso, Nicolau Alvares, Manuel Fernandes Leitão, 
Francisco Nunes Malho, Francisco de Moura, Gaspar Pe- 
reira Cabral, Francisco Dourado, Manuel da Fonseca, Ma- 
nuel Pinto, Luiz Aranha Caldeira, António Montarroio, 
Diogo Nimes, Matheus Rodrigues, Pêro d'Abreu, Manuel 
Castanho, António Rodrigues, Francisco Rodriguea, Do- 



EM AFRICA 209 

miogos Fernandes de Almeida, Gaspar Coelho Bandeira. 
E assim se^acharam outros muitos portugueses,' que aqui 
nfto nomeio por seus nomes, por nÍo saberem escrever, 
mas ySo aqui assignados. (A assignatura é o signal de cruz). 

E eu dito Miguel Nunes, escrivSo, dou minha fé achar- 
me a tudo presente, e tudo passar na verdade pelo jura- 
mento que tenho do meu officio, em fé do qual me assi- 
gnei aqui, e o dito imperador Manamotapá e Diogo Sim5es 
M adeira^ capitão da guerra, e Miguel Nunes, escrivão doeste 
dito campo do imperador, trasladei do ^próprio original, 
que em meu poder fica, bem e fielmente, sem acrescen- 
tar nem diminuir coisa alguma, em fé do qual me assignei 
aqui de meu signal raso e acostumado, que tal é como se 
segue, n'este campo do imperador Manamotapá, no mes- 
mo dia, mee e era atraz declarados. — Miguel Nunes — 
Diogo SimSes Madeira. 

Este abaixo é o signal de Manamotapá. 

O im+p^rador Mana+motapá Gasse+Lucere. 



NOTA N.° 2 

Doação do império de Qulteve (hoje Maiiea e Sofala) 

i coroa portugueza 

Dom Sebastião, por graça de Deus, imperador d'este 
Império de Quiteve, senhor de Chicanga, de Gume, Mo- 
cambo, Macome, da Vumba, Biri, Macaracote, Quizava, 
Motava, Samacamba, Motete, Nepongo, Arare, Sarango- 



la, Neregueme, Chnco mambara, Cnbio, Noromba, Nigui- 
xaiDga, Macraure, Mezan^e, Nezimgano, Nherano, Chi- 
pururo, Sono, Inhabane, Muciimba e Cabo das Correntes) 
etc. Por quanto, doa grandes benaficios que d'EI-Rei de 
Portugal, mou senhor, tendo recebido por sena vaasalloB, 
asaim pessoalmente, com riaco de sou sangue e vidas, co- 
mo nas deapezas do suas fazendas em maus reinod contra 
os rebeldes o alevantadoa de minba naçJio que por muitas 
vezes, tomando armas eontra mim me desapossaram de 
meu império e senhorio, ao qual fui por duas vezes ros- 
tituido, o que considerando eu, e em particular este em 
que o capitao-raór Sísnando BaySo, enviado pelo capitão 
de Moçambique, Júlio Moniz da Silva, me fez, restitiitn- 
do-me novamente á posse do meu império, com morte do 
alevantado Moneum Sacandimo, que injustamente usurpado 
me tinha, e não achando agora presente outra cousa em 
quo mais mostre a lealdade da divida em que a tSa alto 
Rei estou, com o reconhecimento devido a tantos serviços 
de seus vassallas, obrados em utilidade de meus reinoa c 
senhorios, lhe faço, em meu nome e de meus doaeenden- 
tes, leal doação d'este meu Império e senhorios, submet- 
tendo-mc debaixo de sua Real protecção, a cuja Magestade 
reservo todo o direito que d*asseB me é devido, abjurando 
com obrigação a minha real dignidade, que todas as vezcB 
que alguns dos descendentes se rebellaram contra a Real 
Magestade d'GI-B.eÍ de Portugal, meu senhor, Boj.tm pur 
qUc punidos e castigados como verdadeiro senhor d'este 
Império, por quanto assim é minha ultima vontade, e co- 
mo legitimo Rei que d'eBtes reinos sou, os dou e trespasso 
á coroa de Portugal, seguindo-se sempre a ordem de mena 
descendentes por linha direita, conforme o direito, e eu e 
meus descendentes, em fó d'esta vassallagem seremos obri- 



gaã<>3 a todos os annos pa^rmoB ao dito aonhor um Bar 
de iDíirHm, e aasim como vaSBalloa sou tne dará o que por 
meus antepasaadoa Kr costame dar-ae-me Da fortaleza de 
Sofala, para me veatir, e demais grandea, por entender 
o'Uto vae em grande proveito a aeguraaça d'eBtes reinoíii; 
e todos os vassalloa d'EI-ReÍ meu senhor poderio livre- 
mente, com auaa fasendaa, paaear por elles conforme os 
concertos que pur capitulações fícam feitos por mim c pelo 
capitão mór (Í'esta guerra Bísoando Dias BayHo, assistindo 
a essea os grandes de meua Reinos, os quaea declararam 
estavam por elloa, ejuntameate pedindo' que se obrigavam 

rifenaa d'eile9, ao que ae obrigou o dito capitUo raiir, e 
assignei, estando presente o Reverendo Padre Cora- 
Lrio doa frades pregadores, frei Luiz liertrão, o o Pa- 
re Vigário do Mauica, e o Padre Vipwio de Vumba, e 
o Padre Vigário de Sofala, e o Capellão da guerra, frei 
Matheus d'Aoha, e o capitão da dianteira, Domingos 
rte Mattos, e o capitão da rectaguarda, António d'Al- 
meida, e o capitão do Zimbaoé do Quiteve, que ãca por 
oídem do capitio múr em defensa da Hei; Manuel Ro- 
lea Pereira, e João Martins de Paiva, capitão do 
iorro da Manica, e os mais abaixo aasignados. Da- 
t)'e8te império de Quiteve em 23 d'outiibro do 1644 
annos. 

Eu escrivão Domingos Pereira, que o subscrevi como 
escrivão d'oHta guerra — O Hei Quiteve — Sisnaudo Dias 
Bayrw> — Fr. Luiz Bertrão — O commiaaario Fr, Matheus 
d'AcIia — Fr. António de S. José, Vigário de Sofala — Fr. 
Francisco do Freitaa, Vigário de Vumba — Fr. António 
(l'Almoida, Vigário de Manica — António d' Abneida — Do- 
mingos de Mattoa— João Martin» de Paiva ^Lourenço 
Guerra — António Rodrigues Antunes — Manuel Ro- 



estava 
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^^^H as 

^^e V 



ot den: 
^B» n" 



212 P0RTUGUEZE8 E INGLEZES 

driguea Pereira — Bento Rodrigues — Domingos Viegas. 
(Segae o termo do reconhecimento). Doo. a fl. 250 do li- 
vro LX — Arch. da T. do Tombo. 



NOTA N.« 3 

DepolueiU de Fr. Gaspar de Macedo, 
fflostrando que ha longos annos estamos de po«e 

das minas de Kanica 

O reino de Manioa, que está por estas terras dentro, e 
dista sesBsenta léguas do forte de Sofala, e outras sessen- 
ta do forte de Senna, no reino onde eu fui vigário da va- 
ra e' loco -tenente do senhor arcebispo primaz da índia, e 
do qual informo como testemunha de vista e mui experi- 
mentada por alguns annos, é sujeito a um rei cafre, por 
nome Chicanga, o qual é tributário do rei de Manainota- 
pá, ohristão e vassallo de Sua Magestade. Tem este reino 
de Manica, de comprimento, algumas quarenta l^^uas, e 
de circuito algumas sessenta ou mais, e é o mais fértil em 
produzir e gerar ouro de quantos ha sujeitos ao imperador, 
porque de ordinário todo o ouro que se acha n'es te reino 
é em pedacinhos, a que se chama lascas, e em partes se acha 
tanto á flor da terra, que, para chegarem á madre d^elle se 
cava somente á altura de três palmos, o que eu vi oom meus 
olhos por muitas vezes, atravessando por entre as minaa, por 
acudir a algumas ovelhas minhas, que me mandavam chamar 
para lhes administrar os sacramentos, e é cousa averigua- 



da que todo eate reina é um torrSo de ouro, o silo tilo 
grandes oa pedaços d'el)e que de ordinário ub cafroa, que 
o tiram, o curtam em cincoou seis partos, para o repar- 
tirem entre ai, e cada ura fica muitas vezes com o pezo 
d'elle maior que o de uma pedra. 

Estando eu, haverá dois mezes, D'eate reino, andava 
uma cafra cavando a terra para aemear o seu míilio, e de 
um golpe deu com a enxada om um pedaço de ouro, quo 
toria maia de quatro arráteis, e logo gritou por gonto, 
cumo é costume, quando ao acha alguma mina, o cubriram 
o ouro atÉ se dar recado ao rei, o qual mandou que aup- 
pOBto era mina tão groaaa, ae guardasse para outro tempo, 
G ninguém ousou a cavar n'eata paragem, antes a cafra 
foi semear o millio em outra parte. 

Dentro n'eeto mesmo reino de Manica ha umas terrau 
qtlB 80 chamam Matuca, em as quaos de ordinário eatào 
oa cafre» tirando ouro cm taata abundância, que i bastan- 
ta quantidade d'ellõ para se comprarem e gastarem muitos 
bares de roupa todos os annos n'e3ta terra, e em havendo 
gastadores .;ue oavasaem n'estaa tcrran de Matuua, seria 
immeaso o ouro que se haveria d'ella3, pois tom de cír 
cuito algumas trinta leguaa, e todas as scrraa geralmente 
sãu de riquissimas minas, muitas ã'eUaa de pedra, na qual 
estão encerrados pedaços de ouro tamanhos como patacão, 
e meias patacas, e outros menores e maiores. 

N'estas mesmas terras de Matuca está uma mina de oiiru 
inserido om pedraa tão grossas, que vae n'eIlaB o ouro 
atravessado por entre a pedra a modo de raizes de arvu- 
res mui grossas, da qual senão tira já hoje ouro, porque 
us cafres não costumam cavar com alavancas e alviões, 
sBDão com uns páos agudos' com os quuos é impossivcl 
. fortaleza o grossura da mina de ouro, e a razão 



porque d'estas riquieaimas minas de Maaica não vem t 
om dia grandes pedaçoa de ouro assim como naao«, é por- 
que os cafrsi teem modo de tirar das minas, quando é 
muito, porque logo quo os reis sâo avisados que tal cafie 
deu em mina muito grossa, o levou um {i^rande pedaço de 
ouro, e o rei manda dar sobre elle, e roubar-lhe toda a 
uasa, mulher e tiihos, c ás vezes o manda matar, e assim 
du ordinário, tanto que <\5fi em a mma grossa, logu avi- 
sam o rei, e manda que ao nSo cave mais ii'elia; com tu- 
do são muitas lascas i pedaços do ouro que cada anuo vem 
a Senua, e se fundem uas partes da índia, principal mente 
pelaa mitos dos governadores dWtas partes, aos quaes logu 
tudo vac A mfio, «orno foi um» lasoa grande, que, n'oBte 
mez de julho de l(i3í), trouxe .loíio da Rocha mereadur 
de Manica a este Senna, • qual pedaço e lasca sempre te- 
ria nove ou dea onças, e fui visto por todos os homcos 
d'e3te Senna, e eu tinha visto na Maniea quando um ca- 
fre de Diogo de ííouza de Menezes para se lhe entregar 
era Moçambique o trazia, oomo viu D, Andres de Videa 
y Alvarado com os Heus olhos, e os mais companheiros, e 
o anno passado lhe entregaram outras semelhastes, vindas 
de Manica. 

E' este reino de Manica povoado de alguns cincoeata 
homens portuguezes, que n'elle fazem o aeu contracto, 
muitos dos quaes silo nascidos na índia, e alguns viodoa 
de Portugal, e n'elle vivem mui contentes, por causa dos 
salutiferos ares, e mui exceilentes aguas, que descem d«8 
grandes serras, que a'elic ha, donde vem serem tantoa os 
rios d'este reino, que atravessando d'uma parte a ontra, 
3C contam mais de eincoenta, e muitos d'ellcs caudalosos, 
e quasi todos perenncs, cujas aguas commumente enrrem 
por riqnissimas minas de ouro, dos quaes se acham muitos 



sUArfaex 



[HyuB QUH rios, tio lisoa é formuaos, que se oatimam por 
peças luat agraduveis pelas partea da índia. 

E ao pê de uma serra d'egtaH, atrareesHudu eu pelas 
torra» do Matuoa, estava, alguna quatro mozes, numero de 
quinhentos cafres eavandu todos o ouro por este espaço 
de tempo, até que deram em a madre da mina, e logo so 
foram cavar a outra parte ; c tinalmcnte, conctuindu acer- 
ca da muita riqueza d'e3taa terras de Manica, diga como 
testemunha do vista, que ee houvera gastadores que ca- 
vaaaem, se podiam todos oa annos tírar mais do quinhen- 
tos arráteis da uuro cm lascas s<ímente, que nilo tivesse 
noceeDidadc de chegar ao fogo, para se puriticarom, fora 
o muito que se poderia tirar em areias, a quo ae chama- 
vaiD a fuodiçào, porque até o presente se não tem aberto 
n'eato Manica mata quo dez ou doze minas grossas, sendo 
assim que ha mais de noventa serras altíssimas o virgens, 
mui dilatadas, cujas entranhas sãu tudo minai de ouroein 
inimensa quantidade. 

N'Gsto reino dc Manica ha umas terras, a que chamam 
terras de Benzi, as quaes não tom arvoredo algum e tom 
algumas vinte teguaa em circuito ; são estas terras conhe- 
cidas polaa maia abundantes em oui'o que pilde haver no 
mundo, porque tudo o que n'ellaa ha è somente ouro, quo 
se acba em pedaços de arrátel e dois arráteis pouco mais 
ou menos, e n'e8ta8 terras tem o rei Chicauga a sua cor- 
te, chamada Zímbaoé, o não consentindo em nenhuma ma- 
neira que portugnez algum, ou homem da índia more n'cl- 
las, pelu receio que tem de logo lhe pedirem que mande 
I minas, que ha em todas ellas, as qu;ios cllo re- 
na para si como grandíssimo tbesouro. 

d'e3tas terras de Manica serem trio ricas de ouro, 
o também ríquisaimaa minas de christal, ontre aa quaes 



vecm manando muitos rios, e se aaham pedaços d'elle, que 
os cafres trazem por pezoa, com que pezam o ouro, qofi 
vendem aos portuguezea. AcLou-se esta mina de christal 
em especial nas terras de Matuca, e se vê de longe esta- 
rem resplandecendo n'eUaa os raios do sol. 

São também estas terras mui aocomodadas para a vídth 
humana, e n'ellas ha sei» mezeii de frio, e outros seis em 
(|ue fazem umas calmas tão moderadas, que nenhuma mo- 
léstia dào aos habitantes d'ellas, e o tempo frio é em o 
mez d'abril e os cinco seguintea, ao revez dos frios da 
Europa. 

Deixando este reino de Maulca e fazendo derrota para 
o mar, caminho de Sofala, se atravessa um reino por no- 
me Quiteve, o qual comera em Manica, o acaba no duu'í 
e assi tem de largura seiscentas léguas e de compríiaeDto 
algumas cento c oitenta. 

Este reino é sujeito a 8. Mageatade com seu rei Qui- 
teve, tributário, assi como Chicanga oom a sua Mani- 
ca, etc. 

Em uma ilha, por nome Baasanite, aonde se mette no 
mar o rio Saha, ha muito aljôfar e pérolas, que se aohara 
ainda hoje, etc. 

Deixando o reino de Manica, e atravessando o camioho 
de oeste, se passa peio reino de Mocaranga, o qual tom 
de comprimento algumas cincoenta léguas, e de largo 
algumas cento e cincoenta, e é este reino tão copioso 
de minas de ouro, etc. E' este rei vassallo e tributário de 
a. Uagestade. Continuando o caminho do oeste que atra- 
vessa o reino de Entumboé, o qual ò de um mouro cha- 
mado Xarifo, porque lh'o concedeu o Imperador Manatao- 
tapá, porque o ajudou nas guerras que fez a seu anteces- 
sor Coporaoine, por se levantar contra S. Mageatado, etc. 



EM AFRICA 217 

Este remo de Entumboé é também mui cheio de minas de 
4>aro, etc. 

Acabando o reino de Entumboé, e continuando a oeste, 
se entra logo em os vastissimos campos do rei Mocaranga, 
sujeitos também ao imperador Manamotapá, vassallo de S. 
Magestade, aonde os ares sHo mais sàlutiferos que os da 
Manioa, e estas territs são tão dilatadas, que se não sabe 
do fim onde vão parar as minas de ouro, porém tem- se 
por cousa averiguada que, caminhando de Mocaranga 
para oeste ou noroeste, se não poderão andar cento e cin- 
coenta léguas sem que se entre nas terras de Angola, on- 
de, por via de Portugal fazem contracto, os portuguezes, 
etc. 

Deixando estas terras de Manica e caminhando em di- 
reitura para a parte do loeste, depois de seis dias de ca- 
minho se encontra um reino, ao qual se chama Butúa, de 
que dizem que ainda é mais rico de ouro, e mais mine- 
raes, que a Manica. E' este reino de Butua de algumas 
trezentas léguas de circuito, e pela parte do loeste chega 
até parar na Africa occidental, onde quebra suas ondas o 
mar oceano, etc. 

Senna 21 de julho de 1663 — Frei Gaspar de Macedo — 
Vigário da Vara dos Rios da Manica — (Livro das Mon- 
çSes, n.*^ 41 — 2.' parte, fl. 13, archivo da índia — (Pu- 
blicado no n.^ 3 de 1891 do jornal — As Colónias Portu- 
guezas.) 



P0ETUGDEZE8 E INGLEZES 



Carla de Filippe ao vlce-rel da índia, escrlpta cm JG31 
BObre o MoDoiDalapii 



Conde Sobrinho, VÍho Rey da índia. Araign, Eti Ei- 
vou envio milito aaudar como áqiiclle qiic muito amo. Ven- 
do qne nma das capitulaçtíos que sa fízera com n Mottomo- 
tapá, quando meus capitiLes o metteram na posse d'aqiiel- 
le reino, foi a principal que elle aeria meu vasaalío e da- 
ria todos 03 annus três pastas de ouro aos capitíles de Mo 
çambique, e que elles llie enviariam alguma coísa de re- 
torno, elle pareceu dizer-vos, que como estas tros pastas 
de ouro ae dão em aignal de obediência e vassallagem, fica 
mais próprio o rcconhecer-lhe minha pessoa iminediatamen- 
te com este género de tributo, e uSo medeaote outras pea- 
soas, porque por este modo ficará maia honrado e reconhe- 
cido o Monomotapá, entendendo que é meu tributário, e 
assim vos encommende e ordeneis se declare, e que as 
pastas se me enviem todos 09 annos, e o retorno que se 
Ibe ha de enviar seja por conta de minha fazenda, que se- 
rá em maior significação de minha soberania real, honraD- 
do com alguma cousa em meu nome, como poderia, uma 
copa de chistal ou outra cousa accommodada áquelle rei. 
Escripta em Madrid, a trinta e um de abril de mil seís- 
contos trinta e um. O Conde de Vai de Reis — O condo 
de Castro — Para o conde de Linhares. Viso Rei da ín- 
dia — 2.* via. (Doe. do L." 28, fl. 280 — Archivo da Tor- 
re do Tombo.) 



EMJAFfilCA 219 



NOTA N.» 5 

Hoticias redigidas por Ignacio Caetano Xavier em 1738, sobre o ouro 
das margens do Zambeze, e do jlistricto de Zumbo 

Oa Bares bonde se encamínhSo os mercadores n^este tem- 
po sfto 08 aeguintes, todos da parte de Maravi, Senhorio 
do Imperador Caronga, e sec^s Régulos, huns obedientes 
e outros rebellados Bar de Mano, cujo ouro be do mais 
precioso. Mixonga, e Marima, que o produz de menores 
quilate». Béve, nâo o dá tão bom, e Cassunça, e Chicorou- 
goci que ficarSo perto de Tette 3, ou 4 jornadas, em què 
já se não trabalha, nem no de Rafael, que fica antes de 
chegar a Zumbo 4 jornadas. Contarei a abundância d'este 
. ultimo Bar, que teve antes de se tapar para se fazer jui- 
zo da utilidade, que darião todos, se se trabalhasse n'elles 
com a efficacia, e tr^ça, com que -se labora nas minas da 
America, e antes de relatar a sobredita abundância, dicei, 

o como se tira o ouro das minas O Bar de. Rafael 

foi tão liberal que dava por dia 90, 100 e 110 pastas e em 
lõ dias acabou com o seu descobridor Rafael, que era um 
naturid de Goa pelas mesmas desordens, porque todos des- 
apparecemi oomo já disse. No conflito morrerão mais de 
2000 cafres, alem do dito Rafael e outros mercadores. An- 
tes de se romperem estes em ultimo distúrbio, o referido 
descobridor tinha encerrado por cautella bua frasqueira 
do Porto, cheia de saccos de ouro, e 5 boiões, que bua, e 
outros terião 22 arrobas de ouro. . . . £m similhante acon- 
tecimento, ainda que não tão sanguinolento, caducou o Bar 



♦-^ 



P0RTUGUEZE8 fi WGLEZES 



de Malitna, sendo igual nu causa, de que se originou o peiv 
nicioao eÉfeito j pois quaze teve a mesma felicidade em 38 
dias, que ae trabalhou n'elle. Noa^e tempo tirarão 1200 
pastas pouco mais ou menos, os mercadoras, que vem â 
ser pola oatímação de Moçambique pouco menos de hum 
milhão. Desuuhrio este, António da Costa, natural de Goa. 

Da mesma parte de Marayí nas espaldas de Zumbo, es- 
tá o Bar de Cliipapa, que por outro nome se chama d© 
Pr. Pedro, cujo ouro é melhor que o de Mano. Esta mi- 
na nunca foi abundante, por que o seu dono, que era o 
mesmo Fi'. Pedro da Trindade, religioao dominicano, nun- 
ca coasentio que outra pessoa entrasse a utilizar-se da sott 
producção, nem elle se aproveitava de toda, a que se po- 
dia colher d'ella, por temer quo a fama da aliundanoi^ Dão 
deapertassa a ambição dos Régulos visinlioB, e eatea lb'a 
tirasBQm das m?íos. 

Muitos outros Barea ae podião descobrir, mas a pergui- 
ça tem atalhado oa caminhos de buscal-os. Já os tem ha- 
vido de grande provimento, e só na Qõr da terra, de tal 
sorte que, arrancando hua pouca de palha, acharao-se uiuí- 

laq tascas de ouro ; e em tempo, que ainda aa ter 

rus de Maasapa, Bocutto, Maseda e Luanze erão noaaaa, 
acharrio os moradoi'e8 d'ella hum pedaço de rocha branoa. 
que, quebrada e reduzida em pó, tirarão do tal pedaçi 
em lasca, e em granitos mais de 200 pastas. Também lie 
de sabor que muitas minas se não descobrem por não ha- 
ver agoa perto, por que sem ella o não podem apartar da 
mescla da terra, de pedra, de aço, de que de ordinário 
vem misturado. 

Também se achão muitas minas de ferro no Maravi, mas 
não me consta que as haja de cubre ; pode sor que a Íd- 
oLiria o tonha inuultado. Ua segunda vez, que fui iaviado 



f ao Imperador Caroaga, me disse qufl nas aaas terras lia- 
viA ouro, prata, cobre, ferro christal, e outras coiisns que 
as nSo queria mostrar, sem que oe aeus ãllkoa, que são oa 
Fortugiiezes, lhe dessom a guarda, que pedia de aoldadoa, 
e officiaes, igual á que tem o Monomotapá, e que niio só 
teríamos interesses n'e3se8 metaea, mas na doação, que 
queria fazer a seo Irmão, assim trata a Sua Mageatade Fi- 
delíssima, das terras, que prineípíão desde Quellmano até 
Zumbo, Du até á ponta de Zumbo, d borda do Rio Zam- 
bare, com 5 ou ii léguas de Certuo de Largo á proporção 
lia referida longitude . . . 

Todoa eates Bares não são abundantes de viveres como 

) as terras da Coroa ; poróm n'elle8 nSo falta mlUio, 

ft,alguns, também arroz, e em todos carne de cabra, 

[Dha, uaga, legumes, iahamcs, batatais, e fruetaa agres- 



Kumbo he terra, que antigamente foi de hum Uegula 
ido MuBsarura, a quem tomou um fiUio du Grôa por 
tne Chícalia por antonomásia: hoje os mercadores de 
Kílcaranga assistem n'ella, e mandão uomutar ouro pelas 
roupas, e velluriu, que arriscam nas minas geraes de Chan- 
gamira por seus cafres cativos, que se chamao Muasamba 
zes, e não vão os referidos mercadores para aqnelles Ba- 
res pelo receio, que teem, de que o Cbangaraira os repro- 
ò faça seus captívos , . . 
ifellas (terras do Zumbo) Bcào as minas geraes de 
mga, a bonde vão os Mussambazea de Zumbo, a com 
r com roupas e vellorio, que levão de seus amos, 
iradores de Zumbo, e mercadores. Estas minas, como 
l^as as d'aquelle Paiz erão de Manamotapá, quando este 
minava antes da sublevação do Ghaugamíra, que 



222 PORTUGUEZES E INGLEZES i, 

pastor dos seas gados, e agora a maior parte d^ellaa sSo* )- 
d'e8te rebellado. 

Este mesmo he senhor do Bar dfe Cacra^ cujo metal es- 
tava tSo sazonado que ao tempo da sua abertura, se acboa 
n^elle um pedaço de ouro, que tinba de comprimento 4 pal- 
mos, e de grosso 5, em circumferencía quô o Regulo Ca-^ 
roa, de quem t()mou este nome a dita mina, pelo não que- 
rer dar ao Cbangamira, o lançou no Rio, que fica perto 
d'elle com bua bóia, donde o tira quando tem necessidade 
de tirar d'elle algumas lascas ao macbado para as vender. 
O mappa mostra estes lugares, como o da serra de Inha- 
piriri, bonde se dis, que fica o Corpo d'aquelle Servo de 
Deos, o P. Gonçalo da Silveira, Religioso Jesuita, que, por 
causa da Religião, foi afogado com uma Cinta, e lançado 
ao Rio Manjovo. 

Mais abaixo fica o Monte Tura, que os naturaes geral- 
mente contão fora algum dia morada da Rainha Sabá, dis- 
to mesmo me asseverou o velho Cabrabaça já citado . . . 

Ms. B 15 20. 



NOTA N." 6 

Riquezas minerias dos terrenos, 
que os inglezes ainda nos deixaram, depois do tratado 

Senna, 1762 

De Tette dependem o Manno e a Chicova, donde vem 
uma boa porção de Ouro todos os annos, que os morado- 
res de Tette vão com as suas negras sambazar, palavra da 
lingoa do Paiz, que he o mesmo que minerar. 



EM AFRICA 223 

O Manna he das terras do Regalo Bororó, fica aparte do 
Norte de Tette sete, ou oito dias de distancia, logo que 
principião as primeiras agoas, que são em Fevereiro, par- 
tem alguns moradores para aquelle Certâo com as suas 
negras ; entre elles costumavam hir um Padre Jesuita com 
tresentas negras, e um Padre Dominico de ordinário, que 
estava parochiando em Tette, ainda que com menor nume- 
ro de negras. 

Â8 negras vão todos os dias com uma gamella cavar ao 
pé das Ribeiras e dos Riachos, que correm das montanhas, 
e conforme o que achão no chão, trazem i noite fielmen- 
te ao Arraial a seus amos ou senhores. Durante este tra- 
balho o tempo do Inverno, acabado élle, recçlhem ao Ar> 
raiai, donde muitos annos tem vindo duzentas pastas de 
ouro (calctdava se então a pasta em 300^000 rs.), que se 
n'aquelle8 sitios se minerasse ao uso do Bpazil, seria mui- 
to mais considerável a quantidade de ouro, que se extra- 

hiria. 

Ms. B^15 20. 

Doe. mandados coUigir pelo marquez de Pombal, Biblio- 
theca de Lisboa. 



NOTA N.« 7 



Os Inqulfflbas 



Os inquimbas sílo os aliimnos do feitiço de Inquimba ; e 
o feitiço de Inquimba é uma instituição cujas origens se 
perdem nas brumas do tempo, e cuja principal funcção é 



dar aos alamnoa, seus iniciados, a sciencia do 'bem TiTBl 

Eata instituição parece achar-se espalhada por toda a 
raça congo propriamente dita. 

Naa proximidades de Boma ha ima poucos de convetitoa. 

O convento ou seminário dos inquimbas é constituído 
por um cercado de pavèas de palha aprumadas, juntas, 
com uma só entrada e tendo a um dos cautoa um espaço 
coberto ou alpendre, tambcm de palha. 

Deatro do cercado, ou debaixo do alpendre, não ae en- 
contra nenhum movei, nem utensílio de cosínha : voem>se 
apenas alguns manipaasoa, saiaea, batuques e mais artigos 
do ganga (sacerdote, ou feiticeiro) ou dos alumnoa, oomo 
inquimbas. 

E' vedada ali a entrada aos profanos. 

O ganga é um preto velho de olhar intelhgente e velha- 
co, mostrando que acredita só até meio na eiScacia dos 
seus ensinamentos: diapSe d'um grande prestigio sobre oa 
seus ; e é muíto perito nas praticas dos seus ritos, dançso- 
do, tocando o batuque e agitando os manipanaoa e fetiches 
com pantomimas, complicadas de tingidas allucinaçòes. 

Os iniciados são creançaa masculinas de qualquer ex- 
tracçílo, nobre, plebeia ou servil, contanto que sejam do» 
povoa próximos. 

O escravo pdde aer oriundo de muito longe. 

Entram em geral para o feitiço aos aete aos doze annoa;'' 
e demoram-ae a fazer a sua instrucção trez ou quatro. 

Todas as creanças, sobrinhas dos priacipes ou aeua pa- 
rentes próximos, teom a educação do feitiço do Inquim- 
ba : aeria uma vilania imperdoável para am parente do 
rei, não ter sido educado ali. 

Oa sobrinhos dos moradores ricos são os frequentadores 
ordinários. E até o escravo do senhor de consideração, ou 



EM AFRICA 225 

que não tenha successor pôde ser admittido como inquim- 
ba, tornando-se pela iniciação pessoa livre : somente lhe 
será prohibido tomar o nome de Matando e Malanda, que 
são destinados aos príncipes e pessoas ji distinctas antes 
da iniciação. 

A cerimonia da iniciação tem lugar de noite. A creança 
ô tomada de improviso, conduaida pela familia, e entregue 
solemnemente ao feiticeiro, que a recebe com grande de- 
senvolvimento d'um cerimonial de pantomimas e toqaes 
de batuque. 

1 Entretanto ministra-lhe um narcótico, e obriga-a a pres- 
tar um juramento solemne, de que nunca dirá a nenhum 
profano coisa nenhuma do que se passa no convento, nem 
ensinará nada do que ali se aprende. 

Este preceito fica solidamente guardado com a pena de 
morte que lhe será applicada pelo príncipe do seu povo, 
quando o transgredir. 

Depois rapam-lhe o cabello, pintam-lhe todo o corpo de 
branco e vestem-lhe o saial. 

Nunca deixará de andar pintado de branco, nem de 
trazer vestido o saial, desde que no dia seguinte acorda 
n'este estado, emquanto for alumno do feitiço. 

Se a creança não estava ainda circumsisada, acresce a 
todas as cerimonias da iniciação mais essa. 

A pintura branca faz-se em todo o corpo, ficando ape- 
nas a carapinha preta, com uma espécie d« barro que ex- 
ploram para esse fim ; e tem de ser reformada sempre que 
não está bem viva, e os inquimbas toem de apparecer 
diante de gente, mas se n'estas circumstancias lhe falta o 
barro, podem também caiar-se com farinha fina de man- 
dioca, no caso de a terem á mão. 

O saial é formado por um arco de pau d'onde pende 



POSTUGÍU&ZES E mGLGZBS 



uma abundante franja tuita das nervuras medias das fo- 
lhas do palmeira: uubre-iho u i;orpo dusde a altura das 
mamillaH até au ter^u médio das tíbias. 

O arco é circular, e tem um diâmetro muito maior do 
([UB o maior do tliorax: parece-no» até que podia ser on- 
tiadu por uíma dos hombroa. A sua altura oylicdriuit terá 
uns cinco a oito uontlmetros, a a superticie externa do 
uylindro está toda ornada com desenhos quadrados revor- 
tados em diagonal. 

A franja inaoro no arco pelo lado de dentro e d« mudo' 
que nào se vê. Da moama maneira se Dao vê uomo o a 
se prende nit cinta, notandu-se comtudo que esti segura. 

Os inquimbas no acto da inicíaçào tomam nomes t\ 
aó elles podem usar. 

Os prínuipaes d'e3iies nomes ailu: Matundo, Malaada, 
Sacara, Cbingueila, Lussalla, Luvungo, Lutute, Mavanvo, 
Chico, Massunda, LubelU, Mamambundo, Jiica, Quaque- 
gieongo, Chiama e Pesu. 

Desde a inicia^So, o inquimba n»a um raanipana" do for- 
mato aegumte : 

Sobre um cabo cylindrico de quinze centímetros d'al- 
tura estão esculpidas duas tiguraa humanai ajoelItacUa e 
assentadas sobre oa calcanhares, pegadaa pelaa costas até 
á altura dos hombros e tendo em cima das uabeças, í 
unil-aa, um parai leio pípedo de tree uentimetroa de altura, 
a que sorvem cariatides. A lígura que se chama Matu&do, 
o deuB masculino, tem na cara o desenho com que os 
digcnas costumam signilicar a barba; a outra, Malanda, 
o deus feminino, tem a cara lisa o seios de mulher. Aid>' 
bas toem os braços flectidos e assentes sobre o tbnriuc, 
com as mãos levantadas diante do externo, cm posição 
semelhante á que nóa empregamoa para rezar. 



EM AFRICA 227 

A altura total do raanipanso andará por quarenta cen- 
tímetros. 

No exercício dos mysterios de Inquinjiba o ganga em- 
prega três bocetas d*um feitio cónico, com o vértice mui- 
to prolongado, servindo de cabo. 

Estas bocetas sHo de pau e palhas muito bem tecidas ; 
e estão cheias de grãos e milongos. 

Quando se agitam fazem um sussurro especial. 

 mais pequena denomina-se Xangamo em fiote, e Chiofe 
em língua de inquimba, e terá 27 centímetros de cumpri- 
mento. 

Ha iiambem uma espécie de sceptro de que o ganga se 
serve no exercício dos mysterios para impor a sua aucto- 
ridade. Chama-se em inquimba — cancato. 

Logo em seguida á iniciação aprendem as creanças uma 
linguá litm^oa que só é conhecida dos inquimbas e guar- 
dada em segredo com a mencionada pena de morte. E' 
esta língua a que se falia no feitiço, quer nos mysterios, 
quer fora d'elles. 

Os deveres dos inquimbas resumem-se : em guardar se- 
gredo, sob pena de morte ; não se lavar nunca ; fugir da 
comida cosínhada, até da louça ; evitar o contacto das mu- 
lheres ; trabalhar pela instituição, e ter sempre prompto o 
manipanso dos exorcismos. 

Os seus direitos são : ter um nome respeitado ; uma 
scíencia reconhecida ; o poder desfazer todos os feitiços e 
prender todos os feiticeiros ; entrada franca em casa dos 
príncipes a toda a hora ; na das princezas, e até na da 
lefnJba — o que para qualquer mortal implica pena de 
morte (•). 

(*) Angola e Congo — por P. A. Pinto. ^ 



228 PORTUGUEZES E INGLEZES 



NOTA N.« 8 
O tratado de 28 de maio de )891 

A Gran-Bretenha concorda em reconhecer como com- 
prehendidos no domínio de Portugal na Africa Oríental| os 
territórios limitados: 

Ao norte pôr uma linha que, subindo o curso do rio 
Rovuma, desde a sua foz até ao ponto da confluência do 
rio M'Sinje, d'ahi segue na direcção do oeste o parallelo 
de latitude do ponto de confluência doestes dois rios até á 
margem do Nyassa; 

A oeste por uma linha que, partindo do citado limi- 
te sobre o lago Nyassa, segue a margem oriental d'e8te 
lago na sua direcção sul até ao parallelo tò^, 30' de latita- 
da sul ; corre d'ahi na direcção sueste até i margem ori- 
ental do lago Chivita, a qual acompanha até ao seu extre* 
mo. Segue d^ahi em linha recta até á margem oriental do 
lago Chilwa ou Chirua, pela qual continua até ao seu ex- 
tremo limite a sul e oriente ; d'ahi por uma recta até aa 
affluente mais oriental do rio Ruo, correndo com este affla- 
ente e seguindo subsequentemente pela linha media do 
leito do Ruo até á confluência d'este com o riò Chire. 

Da confluência do Ruo e do Chire, a fronteira seguirá 
a linha central do leito do ultimo d'estes rios, até á um 
ponto logo abaixo de Chiuanga. D'ahi correrá exactamen- 
te para oeste até encontrar a linha divisória das aguas en- 
tre o Zambeze e Chire, e seguirá essa linha entre estes 
rios e depois entre o primeiro rio e o lago Nyassa até en- 
contrar o parallelo 14.^ de latitude sul. D'ahi correrá na 



ncçSo de sudoeate Ué ao ponto em que o parallelo 
15." de latitude sul eacootra o rio Ároangoa, e segui- 
rá a liaba media d'eBte rio até á sua judcçSo com o Zam- 
baze. 

— Ao sul (1(1 Zambeze ob territórios comprehendídos na 
eHphera de influencia portugueza são limitados por uma li- 
nha que, pHrtiodo d'um ponto fronteiro á embocadura do 
rio Ároangoa ou Loangoa, vae ua direcção buI até ao pa- 
rallelo 16." latitude, segue este panillelo até k sua iuter- 
secçãn com o 31." de longitude leste Greenwich corre para 
leate direito ao ponto onde o 33." de longitudn leste do 

' Oroenwich corta o rio Mozoe e segue esse 33." para o sul 
até á sua interaecçílo pelo parallelo 18." 30' de latitude 
sul; d'ahi acompanha a crista da vertente oriental do 
planalto de Manica na sua direcção sul até á linba media 
do leito principal do Save, seguindo por elle até á sua con- 
flueflcia com o Lunãè, d'onde corta direito ao extremo nor- 
deste da fronteií-a da Republica Sul Africana, continuando 
pflias fronteiras orientaes d'6ata republica a da Swazilan- 
dia até ao rio Maputo. 

Fioa entendido que ao traçar a fronteira ao longo da 
crigta do planalto nonbum território a oeste do meridiano 
de 33.", 30' de longitudu l«8tc de Greenwich será com- 
prahendtdo na espbera portugueza, e que nenhum territó- 
rio a leste do menííario de 33." de longitude leste de Gre- 
enwich ficará comprehendido na espbera britânica. Eafa 
linha aoffrerá comtadu, sendo necessário, a inflexíto bastan- 
te para que Mutasaa fique na euphcra britanmca e Mace- 
quecc na esphera purttujuaza. 

— A Gran-Bretenlia obriga-se a nílo pôr obstáculos á 
extensilo da esphera de ioduencia portugueza ao sul de 

Uirenço Marques até uma linha que, partindo da conflu- 



encia do rio Pongolo com o rio Mfliputo, Bogue o paraUelo 
d'eBte poDto até á costa marítima. 

— Fica estabelecido quB a Lnha divisória occideatal, se- 
parando a flsphera ing-leza da oaphera de iDãueocia porta- 
gucza na Ãfríca Central, subirá o centro do leito do Zam- 
bozo superior, partindo das cataractas do Katima atè ao 
ponto em que entra no território do reino de Barotse. 

— A navegaçito do Zambeze e do Chíre, ioeliiindo to- 
das as suas ramiticaçSea e embocaduras, será completameti 
to livre para navios de todas as nacionalidades. O gover- 
no português concorda em permittir e íauilitar o transito 
de pessoas a uicrcadoriaR de toda a etipecie, pelas vias âu- 
viaes do Zambeze, do Cbire, do Pungiie, do Buaio, do 
Limpopo, do Save, e dos tributários d'6Btes, bem como 
pelos caminluis terrestres que sirvam de meios de commu- 
nicação onde ou rios díLo forem navegáveis. 

Fiuti entendido que haverá liberdade para oaaubdhOBO 
mcruadorias de auibaH aa potencias atravessarem tanto o 
Zambeze como os diatrictos marginaes do lado esquerdo 
do rio, e situados acima da conãuencia do Cbire, e 
ainda os dístrictos marginaes do lado direito do Zambe- 
ze situados acima da confluência do rio Luenba (Uuenga), 
sem que a essa passagem seja posto qualquer obstáculo, « 
sem pagamento de direitos de transito. 

Fica outrosim entendido que, nos districtos acima ateu- 
cjpnados, cada uma das potencias terá, tanto quanto Kr 
rasoavol mente necessário pura o estabelecimento das com- 
municações entre territórios que estão sob a sua influen- 
cia, o direito dg construir estradas, caminhos de ferro, 
pontes e linhas telegrapbicas através dos districtos perten- 
centes á outra potencia. As duas potencias gosarSo ii'esta8 
zonas da faculdade de adquirir, em cundíySes rascáveis, o 



EM AFRICA 231 



terreno necessariq para taes fins, sendo-lhes também con- 
cedidas as demais facilidades indipensaveis ; Portugal te* 
rá igoaes direitos nos territórios britannicos das margens 
do Chíre e íios territórios britannicos comprehendidos en- 
tre o território portuguez e as margens do lago Nyassa. 
Qualquer caminho de ferro, construido por uma potencia 
no território da outra, ficará sujeito ás leis e regulamen- 
tos locaeS, estabelecidos por accordo entre os dois gover- 
nos, e no caso de divergência de opinião, submettidos á 
arbitragem, conforme fica abaixo indicado. 

Facilitar-se-ha egualmente, entre os dois limites acima 
mencionados, a construcção sobre os rios de cães e desem- 
barcadouros com destino ao commercio ou navegação. 

— No interesse de uma e outra potencia, Portugal con- 
corda em permittir a completa liberdade de passagem en- 
tre a esphera de influencia britannica e a bahia de Pungub, 
para mercadorias de toda a espécie, e em proporcionar as 
indispensáveis facilidades para melhorar os meios de com- 
municação. 



NOTA N.« 9 

Notiela histórica sobre Moçambique 

Moçambique, provincia portugueza situada na vertente E. 
do continente africano, entre 10^41' e 26^30' Lat. S. Oc- 
cupa cerca de 2:000 kilometros de extensão na costa e 
860 na sua maior largura, calculando-se aproximadamente 
a superficie.em 1.284:000 kilometros quadrados. E' limi- 
tada ao N. pelo estado de Zanzibar, a E. pelo Oceano In- 



dic», ho S. peta colónia ingleza do Natal, sesdo a O. pon- 
uo definidos em tiXgaas pontoa 03 aeus limites, visto nomo 
a occupaçSo su nSo tem prolongado para o interior, embo- 
ra ae noa dSo oonteate o direito de estender para eato lado 
>} nosso domínio. 

Também au N. se não podem considerar perfoítamuato 
doterminadoB os limites, havendo surgido duvidas, embora 
impi-ucedeiites, quanto ai> nosso direito á bahia de Tungite. 

Eata bahia, formada au N. peht Cabo Delgado, e ao S. 
pela punta de Tungue, tem duas entradas, porque se le- 
vanta no meio da sua embocadura a illia do Ticoma. No 
ti-atado de commercio celebrado em 1880 entre Portugal 
e Zanzibar, e que está sujeito actualmente (1882) á ap- 
provayílo do parlamento, nào se eunseguio ainda deixar 
resolvida esta importante questão. 

E' pouco conhecida a orographia de tão vasta provin- 
ciu, principalmente para o interior d'ella. Conhecem-ao 
apenas algumas serras e montes isolados, taes como Mi- 
bingo, Manazembo, Perane, Macanga, e serras Chomaro, 
Morumbala no districto de Quelimane ; serras Caroeira, 
em cujas abas ostá odifícadaa villa de Tete, Lupata, Vuo- 
ga, Camoenga, Mixonga, monte Churi-CburI, no districto 
de Tete; serras Quénia e Chibata, ao N, do riu Cafué ; 
serras Buila, Cangelle e Caniele, entre este rio e o Zam- 
beze; serras Chenamba e Quai, ao S. d'esta; serra Fura, 
nas terras de Changauiira; serras Madumiimbela, Matopo 
c Dunanzele, uos Mateheles, a O. do districto de Sofala ; 
serra Cljitevatanga, ao N. d'este diatricto; serras de Chi- 
cundo e Maloios, a O. do districto de Inhambane ; e fínal- 
mente os montes Libumbo, ao O. do districto de Louren- 
ço Marques. 

O seu Bystema hydrograpLíoo 6 maia conhecido, princí- 



be, Ss 

^ e TeK 



Fe 

I 



palmeate na psrte ctmtral da província. A principal baula 
Itydroçrapbica é a do Zambeze, aujo curso tem sido eatu- 
dado e explorado pcloa viaJantOB portugui^zes e eatrangei- 
i-oB, O que abrange uma auperfiuie tix tens ia ai ma. 

Os ontroB rios mais importantes aSo o Limpopo ou Bem- 
bc, Save, Caracamona, Quintangonha, Angoche, Cavone, 
ica, Maputo, e dnalmonte o rio do Espirito Santo 
pie é o eatuarii» dos trea rios Uatola, Lourenço Marques 
e Tembe. 

O9 pontos maia notaveia do litoral ssílo Cabo Delgado, 
no estremo N. doa dominioa portugueses ; Gabo de S. So- 
bastiilo, no limite dos diatrictoa de Sofala o Inhambuno ; 
bahia do Femba, com bom ancoradouro; do Condaoía, At 
Fernão Velloso, de Sangage, de Mlfusse, de Inhambane, 
a magnifica babia de Lourenço Marques ou da Lagoa, 
iCH?to de Sofala e enseada de Angocbe. Na magnifica ba- 
Ift de Mocambo, ao S. de Moçambique, estabeleceu- se 
li ultimamente um posto aduaneiro. 
A pequena distancia da coata encontram-se ao N. o ar- 
cbipoUgo de Quurimba ou Cabo Delgado, depois a ilha de 
Moçambique separada du continente por um canal de 5 
kilometroB de largura que forma o molhor porto da pro- 
víncia. Archipelago de Angocbe; fronteira a Sofala a Íllm 
Chiloane ; archipelago de Basaruto ; e na bahia de Lou- 
renço Marques as Ilhas de Inhaca ou Unhaca, Elephautes, 
Beguolene, Chefina Grande e Cbeíina Pequena. 

Os portoa da província abertos ao i;ommercio estrangei- 
ro fl^o Ibo, Moçambique, Angocbe, Quelimane, Inhamba- 
ne, Lourenço Marques e Sofala. 

O clima de Moçambique ó muito quente, em alguns 
pontos insalubre o fatal aoa europeus, atibrctudo nas pro- 
ximidades dos rios e das aguas eatagnadaa. No ontaiAo ha 



POETOGUEZES E INGLEZE8 



^ 



muitos logares rala tivam ente saudaveix, em que baatarJam 
algumas obras de saneamentu para qtie ne toraasãem com- 
pletamente salubres. E isto ae tem obtido já noa ultiiuus 
annos, em vários pontos, especialmente em Lourenço Mar- 
ques, onde a extincção de um pântano concorreu desde 
logo para melhorar consideravelmente aa oundíçSea de sa- 
lubridade d'eata localidade. 

Ha na provinoía duas estagSes: a das chuvas e a secca; 
aquella de dezembro até março, a mais doentia, pi'inci|)al- 
mente depois das chuvas ; esta, a maia aalubre, sobretudo 
nos mezea de setembro, outubio e novembro. 

A província é de uma lortilidade pi-oãigiosa. Ãa saaa 
prodvtcçSes mais importantes são trigo, milho, feijão, man- 
dioca, pimenta, anil, gergelim, café, algodão, arroz, bor- 
racha, gingubn, gomma copal, gomma elástica, tabaco, 
canna aacchariun, urzella, grande quantidade de cera, sal- 
sa parrilha e cebo vegetal ou mafurra como lhe chaiuaDi 
em Inhambane. RegiSea ha em que o café naace até sem 
cultura, e em que o algodão o a caaa saocharina creaccm ex- 
pontaneamente. A Zambezia é do uma riqueza verdadei- 
ramente extraordinária. Cobrem-n'a extensas e magnificas 
Itorestas de preciosas madeiras de cunstrucçÕo e marco- 
naria, tornando-se muito especialmente notáveis o cedro, 
o páa ferro e ébano. Sofala e Inhambane produzem o me- 
lhor arroz da provinda. Ultimamente explora-se a planta- 
^^ilo da papoula para u fabrico do ópio, com bons ruaul- 
tados. 

Para ae fazer uma idéa aproximada da riqueza natural 
da província accrescente-ae ainda a abundância de mar- 
Sm de superior qualidade produzida pela caça dos ele- 
phantea, a abada o os dentea do cavallo marinho, as pé- 
rolas it aljôfares, o amhar de Sofala, a peaca dos cauria, 



EM AFBICA 235 

e o bicho do mar ou macaxoxo que podia constituir um 
ramo importante de commercio. 

A fauna é rica. No interior abundam os elephantes, os 
rbinocerontes e os hyppopotamos, posto que de anno para 
anno vâo consideravelmente diminuindo, em consequência 
da caça incessante que se lhes faz. Encontram-se também 
antilopes, búfalos, leões e leopardos. 

Existem na provincia em muito pequena quantidade e 
quasi só no litoral os cavalllos, bois e outras espécies de 
gado. Para o interior não se encontram senão raros, por- 
que a mosca chamada tsé-tsé os destroe. Esta mosca é 
um obstáculo importante á creaçâo do gado, é certo po- 
rém que ella parece desapparecer quando não tem para se 
alimentar o sangue de certos animaes selvagens, e natu- 
ralmente logo que a civilisação caminhe para o interior 
afastará também o terrivel insecto. 

O reino mineral é riquissimo. O território de Sofala 
e as regiSes vastissimas do interior possuem extensas 
alluviSes auríferas, cuja exploração não tem pern^itti- 
do até hoje a falta de capitães, de communicaçSéô e de 
segurança. E, ainda na Zambezia onde existeâ as prín- 
cipaes minas de ouro e de prata, apontando-se as das 
margens do rio Mature, de Mixonga, Abutua, Sanhate e 
Maxinga. As minas de cobre e de ferro existem princi- 
palmente nos territórios de Sofala, Quiteve, Quissanga, 
Manica, Sena e Tete. Foram outr'ora muito celebradas 
as minas de prata de Chicova. Na Zambezia verifícou-se 
a existência de depósitos de carvão de pedra que já foi 
analysado em Lisboa e classificado de boa qualidade, mas 
a sua exploração não é por emquanto remuneradora, 
principalmente pela falta de communicação fácil com o 
litoral. 3 



Kas montanhas do Libombo, e na rogiSó tanto a E. 
d'eataã montaolias, do território portu^iiuz, 'íomo a O., no 
território do Transwaal, tudo leva a crer, que oa jazigos 
de carvSo teem uma extecaã.» incalculável. A peqiieua 
diatancia que as sepai-a da costa, que aiada menos impor- 
tante se tornará cunstruindu a camintiu de ferro de Lou- 
renço Marques, permiltirá que o carvão possa chegar ao 
litoral pOr um preço dimiauto, tornando aquelle parto a 
estação principal de abastecimeato de carvão para os na- 
vios que percorrerem os maros orieataes. 

A província, e principal mente a abençoada região da 
Zambezia, encerra poÍH preciosidades inesti roa veia. Ha ali 
abundância de tudo para acudir ás necessidades dos habi- 
tantes do seu vasto território, sobrando ainda muito para 
exportar. O solo bem explorado faria d'ella o mais rico 
ãorUo da corÒa portugueza. 

A verdade é, porém, que poucos, 
montos, se acham aproveitados. Apen 
si toda a provincia o milho giosso, 
xueira, diversas espécies de feijão 
mandioca,' o amendoim, e o gergelim 
tra em parte alguma propriedades j 
ditas, com os elementos de cultura e de trabalho que maia 
ou menos é tacil encontrar em outras colónias nossas. Hos 
prasos da Zambezia é ainda onde a cultura tem attingido 
mais algum aperfeiçoamento. Noa outros distriotos e ape- 
nas no litoral se coíbe o caju e o coco. As sementes aboo- 
saa, objecto boje de larga exportação, são cultivadas no 
interior pelos indígenas. 

E comtudo bastariam algumas das muitas culturas indi- 
cadas para que o solo é admiravelmente disposto, bastaria 
a exjj^oraçào de algumas das riquezas mintiraes que cita- 



do tão valiosos ele- 
as se cultiva em qua- 
o rnilfa'* fino, a me- 
e outros legumes, a 
Mas não ae encoa- 
i propriamente 



» que a proTÍucia attingiase um grau <le pros- 
* perídade considerável. 

oaíé naace em variua pontoa aem cultura, e bum tra- 
tado podia concorrer dos mercadoB com oa de molhor qua- 
lidade, o tal);i<.-o, a cochonilha e o udÍI creBcem como na.-^ 

igiSea tiii-í melhor os produzem actualmente. 
Seria faoilimi h cultura e o aproveitamento da cauua 
de asaucar, e comtudo apenas uma ou outra moenda ae 
«ncontra na província. ' 

Uuitaa d'eataH producçSea tem dado em diÉferontaa epo- 

uOlias logar a emprezaa, quasi todas de ephemera duragiío. 

i fabricas de anil em Sena, de telha em Quetiinane, 

9 tecidos em Mo^-ambiquc ; crearam-se emprezas para a 

wsca da baleia, para a caça do elepLante, e para outras 

EíMpJoraçõea, maa tudo detínhou em pouco tempo, cootrí- 

^iodo para os desaatroaoa fins de muitas d'eBta8 erapre- 

1 a falta de organiaagão adequada, o mau systema de 
Dlonisaçilo, a ausência qiiaai completa de melhoramentos 
páíspensaveis para facilitar as communicaçSea, e dar se- 

■ança aos capitães e á iaduatria, o traâco da escrava- 

. a instituição dos praaos da coroa e muitas outras 

lAoaaaa que não é para eate logar analyaar detidamente. 

OVtraso da agricultura pôde em grande parte attribuir- 

i á errada coustituiçào da propriedade, determinada em 

{rande parte da província peta inatituiçíto dos prasos da 

wrõa. Em resultado d'eata inatituiçíío eram dados em três 

^das a um individuo vastíssimos terrenos. O numero d'e8- 

W^a prasos subia a maia de lÚO, e alguna, como oa de Bo- 

■^rw, Marrai, Mahindo, Massangano, chegaram a ter de 100 

) kilometroa do cumprimento sobre 50 a 150 de lar* 

■a. D'eata forma o território estava dividido por um 

iqueno numero du famílias, e alguns d'Qaaea prasoa estão 




aíada hoje nas mSoa de um uníco individuo que exerce 
dominio nilu só sobre a terra, mas também aobre aquellas 
que n'ella ha,bitHm. Os praaou abandonados ou permane- 
cem deaertoa ou teem aido invadidoa peloa vatuaa ou lau- 
diss. Pela sua instituição, cada um d'el!es devia ser dia- 
fructado por uma bó familia, dadu a cada iadivíáao do 
sexo femiuiau descendente de portuguez europeu, sendo 
excluído da successilo o varfto pela fêmea; aó podia ter 
domínio util o residente n'eUêí a grandeza do praso dS.o 
devia exceder certa extensão, maa com o correr dos tem- 
pos estas clausulas deixaram de ser observadas. Alterou- 
se a grandeza marcada para oa prasos, o mesmo emphy- 
teuta accuraulou diversos prasos, os seus possuidores dei- 
xaram de residir n'elles, descurou-ae a cultura, extorquiu- 
se ao colono o fructo do seu trabalho, obrígando-u o em- 
pLyteuta ou os seus agentes a vender os pioductoa das 
auae próprias culturas por preços taxados pelos senhores 
doa prasos. Em 1838 um decreto prohibiu novas coccoa- 
sões de prasos da coroa, e em 1854 outro decreto aboliu 
a instituição em todos os territórios da província de Mo- 
Ijambique. Oa terrenos deviam reverter para a corOa como 
allodiaes, e oa colonos livres ficarem sujeitos unicamente 
á legislação geral. O decreto de 1854 nunca se cuníprtu, 
e só ultimamente, em 1881, o governo da metrópole vol- 
tou a empregar os meios que julgou conducentes a realí- 
sar a extincção dos prasos. Com este estado de cousas, 
tem sido atropbiada a liberdade dos colonos, tem perdido 
a fazenda publica, e tem-se sustentado, a despeito da lei, 
uma instituição que mautém um peiígoao e injustiãeavel 
feudalismo. 

Nem ao menos em favor d'este systema se podia alle- 
gar qij^ produzisse receita para a província. O rendimento 



£M AFRICA 239 



'■'-■ ^x^^^x/N.*- rK.'"/ w'^''^*•x/ w^/^^v./^ /^-•'^'N.yxy"^ "^ /• -/ *^-j*^ ^\ 



foi sempre insignificante e só ultimamente cresceu um 
pouco, por causa da arremataçSu de alguns prasos no dis- 
tricto de Quelimane, por preço elevado. Em 1880-1881, 
as rendas dos prasos de Quelimane subiram a 23:332«$375, 
de Tete 823f$595, de Sena 2:302^50, o que dá um total 
de 26:458^520 réis. No anno anterior as rendas tinham 
sido de 13:01 1«$320 réis. 

Também não tem a provincia uma industria própria • 
constituem apenas pequenas industrias o fabrico de em- 
baroaçSes, a preparação do jambaláo (summo fermentado 
do c^'u), o fabrico de óleos de amendoim, gergelim e coco, 
e o fabrico de esteiras, saccos, e objectos de palha. A pes- 
ca das pérolas podia constituir uma grande industria, mas 
está por explorar. As artes e officios exercidos por liber- 
tos são quasi exclusivamente os de pedreiro e carpinteiro; 
os calafates em geral são mouros; os ourives, alfaiates e 
ferreiros, são baneanes. Dos degredados que não estão no 
serviço militar poucos tem profissão. 

Ultimamente parece querer acordar-se de um somno 
de tantos annos, por quanso está orga lisada expressamen- 
te para explorar a Zambezia uma companhia, que já con- 
cluiu estudos valiosos acerca d'esta região, mandando ali 
para esse fim uma missão especial, dirigida por Paiva de 
Andrade, enthusiasta pela prosperidade d'aquella região, 
e emprehendedor ousado, a quem não aterram as difficul- 
dades nem os perigos da vasta obra que iniciou. 

Também nos últimos annos se tem realisado, principal- 
mente em obras publicas, importantes melhoramentos na 
provincia. 

Em 1876 partiu de Portugal uma das mais completas 
expedíçSes no seu género que tem saido da metrópole. A 
expedição, além de fornecida de todos os instruo^ntos 



P0RTUGUEZE8 E INQLEZE8 



necessários para os trabalhos de campo a de gabinete, le- 
vou um pesBOat relativamente aumetuBu e habilitado, 30 
carpinteiroa e pedreiros, 10 ferreiros e serralheiros, 30 
operários militares, afora o pessoal superior, engenbeiroa 
uhefcs, conductores, desenhadores e apontadores. Prestou 
esta expediçSo relevantes serviços á provincia, nos esta- 
dot>, conatruo^So e conservação de estradas, pontes, tele- 
graphos, obras de rios, cauaes, pliaroes, deasecamo&to do 
pântanos, irrigaçSes, construcções, reparaçílo e conserva- 
ção de edificioB publiooa e fortificaçSes. Estudou o director 
d'eata expedição, o major Joaquim José Machado, o ca- 
minho de ferro de Lourenço Marques a Pretória, mas á 
sua construcção, de que novamente se trata actualmente, 
obstaram os acontecimentos do Trauswaal. 

O commercio de Moçambique tem passado por osciila- 
i;ões, conforme as differentes causas que tem in£uido na 
facilidade das transacções ; comtudo, nSo obstante oa obs- 
táculos que geralmente o tem contrariado, pode dizer-se 
que tem mantido um constante accrescimo. 

O cummeruio interior está nas mãos doa lianianes e ba- 
tias que sS^o os donos de quasi todas as lojas e armazéns 
de vendas nas loualidade& mais importantes da provin- 



O commercio externo k em grande parte realisado pelas 
easas commerciaes Regia Aimé e Fubrc & FÍIs, que man- 
tém um grande numero de navios navegando conatante- 
mcute entre Moçambique o Marselha. 

Analysando o movimento commeruial da província, v€- 
se que o movimento de importação, que era ainda em 
1845 de 478:403^134 réis, subia em em 18t>9 ad0O:2ia6d68O 
em 1871 a 955:220á4:i9, em 1873 » _.171:672(!159, om 
1874*a 1.046:1075279, em 187f. a l.UGi):542íl762, am 



EM AFRICA 211 

1778 a 1.100:107^51112, em 1879 a 1.252:242^5(827 e em 
1880 a 1.901:539^964. 

A exportação que em 1845 era de 450:173^428 réin, 
subia em 1869 a 720:572^51075, em 1871 a 721:182^51871, 
em 1873 a 725:488^553, em 1874 a 784:075^220, em 
1876 a 960:528í5l732, em 1878 a 908:559,5(418, em 1879 
a 930:853j5(601 e em 1880 a 1.440:638^399. 

Relativamente ao anno de 1874 os géneros que mais 
avultaram na exportação foram: amendoim 101:914^000 
réit», couros e pelles 113:666^000, marfim 249:312,51000, 
gergelim 62:156^1000, cauril 31:319,51000, cera 24:690,51000, 
borracha 28:321^000, urzella 11:538,51000. 

Na importação avultam tecidos de algodão 438:456,51000 
réis, armas de fogo 77:426,51000, aguardente e cognac 
39:887,51000, miusanga e coral falso 24:775,51000 e pólvora 
20:225,5(000. 

Actualmente, com pequenas dífferenças, a relação entre 
08 valores dos productos importados e exportados, é o 
mesmo. 

Relativamente ás naçSes com as quaes as transacçSes 
commerciaes ao e£fectuaram, ainda no anno de 1874, a os- 
tatistica moâtra que a importação foi no valor de réis 
235:607^000 de Bombaim, 170:134,61000 de Marselha 
e portos de Inglaterra, e 58:627,51000 de Zanzibar, ao 
passo que foi só de 28:375,51000 de Lisboa. 

Entraram nos diversos portos 201 navios de longo cur- 
so, incluindo 33 vapores com a arqueação total de 18:658 
toneladas, e 210 embarcaçSes de cabotagem, incluindo 11 
vapores. 

Examinando os mappas relativos ao anno de 1880 vemos 
que a importação em navios nacionaes foi a seguinte, com 
relação ás differentes alfandegas: Ibo 5:413,51100,0 Mo 



242 PORTUGUBZES E INGLEZES 

çambique 87:300f$092, Quelimane 38:073^694, So&la 
12:710,{1250, Inhambane 10:595^950, Lourenço Marqaos 
13:206í51920; total 167:300,51006. 

A exportação em navios nacionaes: Ibo 7:876,$450, 
Moçambique 753:437^81 1, Quelimane 289^700, Lourenço 
Marques 11:757^640; total 779:381^5(601 réis. - j 

A importação em navios estrangeiros no mesmo anno 
foi o seguinte: Ibo 65:994^355, Moçambique 985:228,51987, 
Quelimane 350:703^349, Inhambane 133:584,51166, Lou- 
renço Marques 198:729,51116; totat 1.734:239,51958 réis. 

A exportação em navios estrangeirobfoi : Ibo 49:201,51243, 
Quelimane 397:473,51559, Inhambane 214:581,51996 ; total 
661:256,51798 réis. 

Com o progressivo, embora lento, desenvolvimento com- 
mercial da província, os seus rendimentos tem crescido 
ogualmente^ pois sendo em 1850-1851 no valor de réis 
78:405,51541, foram no anno de 1879-1880 no de réis 
244:091,51000, total relativamente pequeno comparado com 
com a grandeza territorial e riqueza da província. As re- 
ceitas da província de Moçambique &ão 'avaliadas no orça- 
mento para o anno de 1882-1883 do modo seguinte : de- 
cima predial 4:500,5(000, industrial 8:000,5(000, direitos de 
mercê 1:000,51000, sêUo 5:000,5(000, multas 750,5(000, con- 
tribuição de registo 3:000,5(000, emolumentos sanitários 
270,51000, o que dá para os impostos directos 22:520,5(000; 
impostos indirectos 200:000,51000, foros 250,51000, laude- 
mios 150,5(000, e 20:000,^000 de rendimento dos antigos pra- 
sos da coroa, medicamentos vendidos ao publico 3:000,5(000, 
correio 2:500,^000^ imprensa nacional 400,51000, receita 
eventual 5:000,^000; total 253:820,51000. 

Em 1880 decretou-se também a contribuição sobre o 
alugjiel das habitações, regulou- se o imposto de tonela- 



EM AFRICA 243 

^m, mas não se pôde ainda ealcular qual o resultado que 
^ obterá d'estas fontes de receita. 

Divide-se a província em oito districtos : Cabo Delga- 
o, capital Ibo ; Moçambique^ capital Moçambique que é 
^mbem a capital de toda a província ; Angoche, Queli- 
xiane e Tete, com as capitães dos mesmos nomes; Sofala, 
^VLjSL capital foi ultimamente transferida para a ilha Chi- 
loane; Inhambane e Lourenço Marques, com as capitães 
dos mesmos nomes. Sena faz parte do districto de Tete. 

A prpvincia tem um governador geral, respectivo secre- 
tario geral, e juncta de fazenda ; e em todos os districtos, 
)xcepto no da capital, a administração está confiada a go- 
vernadores subalternos. Estes são auxiliados por capitães 
DÓres que julgam as causaa (milandos) dos indigenas^ e nos 
lois districtos de Angoche e Cabo Delgado, por cheiks 
noaros confirmados pelo governador geral. No districto 
le Moçambique ha um administrador dr conselho. A ad- 
ninistração municipal, .como a de quasi todos os serviços, 
»stá ainda em absoluto estado de embryão, sendo a causa 
principal a falta dê elementos para compor as vereações. 

Ha uma capitania mór chamada das terras firmes, e no 
>rçamento inscrevem-se differentes verbas para remune- 
*ar os serviços de capitão mór, que é militar, e também 
>ara o capitão mór dos mouros de Apoense, chegire do 
^aitangonha, dito de Saucul, dito do Cabeceira Pequena. 

Com as provincias de Macau e Timor, e índia portu- 
;ueza, forma o districto judicial ou relação de Goa, e com- 
prebende as 4 comarcas de Moçambique, Quelimane, In- 
lambane e Lourenço Marques. Eclesiastícamente, não fór- 
na verdadeiramente uma diocese. Constituo apenas uma 
3relazia, estabelecida por buUa do papa Paulo II que tem 
lido muitas vezes conferida a um bispo in partíÒií8,Aiyi' 



.•> 



244 



POfiTUGUEZES E INGLEZE8 



dida em 13 parochiaa : Sé (S. Sebastião), Cabeceira Q-ran 
de, Mussouríl, [bo, Quelimane, Sena, Tete, Sufata, Inbam- 
banu, Lourenço Marqueis, Angochc e Baaaruto, que são 
geralmente preenchida» por sacerdotes de Oòa. 

No principio de 1882 o estado uffectivo da força milítur 
da proviocia de Moçambique cumprebendia 1:080 praçafl. 
Eata ft>rça achava-se diatribuida do «egiiiote modo : etn 
Moçambique 303, Augoclie 74, Ibo 72, Masaoiil 68, Qao 
limane 108, Maearo 16, Sena 102, lobambana 170, So 
lala 156, Louronçu Marque» 284, lahaca 18, Oatembe 12, 
e Teto 197. Está dividido por 5 batulbScs, o de caçadO' 
rea n." 1, no dístricio de Moçambique, com 515 praças 
Q r," 2, no de Quelimane, eom 270; o n.* 3, em Imham 
bane, eom 326; o u.° 4, em Lourenço Marques com 272j 
e o n." 5, em Tete, uom 197. 

Na província ba a praça de S. Sebastiílo em Moçambi- 
que, oa furtea de S. Lourenço e de Mosauril, e a fortaleza 
de Ibo. 

A provincia tom um arsenal na capital, regularmente 
organisado e em que se tem feito modernamente alguns 
melboramentOB importantes. O serviço dos corpos estÂcon- 
tiado a um capitão de portos interino, havendo patrões eiQ 
Quelimane, lubambane, Lourenço Marques, Sotala e Ca- 
bo Delgado. 

Pura serviço próprio da provincia ba actualmente aps' 
naa um pequeno vapor destinado á navegação do Zambe- 
ze, O aorviço de obras publicas está í;ou2ado a um onge 
nhciro, 12 conductorea e 1 desenhador. 

A inslruuçSo publica está n'um atraso deplorável. Ha 
na capital uma escola principal, que poucos resultados teta 
dado, e no resto da provincia apenas 10 escolas d'inBtruc- 
çSo Qrimaria, nem todas sempre providas 




£M 'ÁFRICA 245 



>r-./-.^vy-^.^.^ y ^ r r~.- ^j- •- y r^j~^^y^ 



trequentadas. Na capital creou-se ultimamente uma escola ' 
de artes e officios, que pôde, ^convenientemente dirigida e 
aproveitada, ser de úteis resultados práticos. 

O serviço de saúde está confiado a um chefe, com õ 
facultativos de 1.^ classe, 6 de 2/ e 6 pharmaceuticos. Ha 
uma companhia de saúde composta de 39 praças. Tem a 
província um hospital em Moçambique e enfermarias nos 
differentes districtos, mas este serviço, que aliáz é muito 
importante no ultramar, está longe de corresponder ainda 
ao que era indispensável. 

A província manda 2 deputados ás cortes. 

E' deficientiséima a estatística da população da provín- 
cia. Uma de 1849 accusava 26:215 habitantes livres, e 
42:196 escravos, ao todo. 68:411, em cujo numero esta- 
vam incluídos 2:000 brancos, dos quaes poucos eram eu- 
ropeus. '^ 

E' fácil porém de ver quanto é difficil fazer a estatisti^ 
ca em uuia área tão considerável, principalmente se se 
quizesse comprehender a populaç?lo indígena de todos os 
povos que se coúsideram sujeitos ao nosso domínio. 

Os elementos principaes da população de Moçambique 
sSo os aborígenes, mouros descedentes dos antigos con- 
quistadores árabes, asiáticos, canarins, batias, parses, ba- 
neanes, que constituem a base da colónia christB. 

 costa de Moçambique foi descoberta no anno de 1498, 
pelo grande Vasco da Gama, quando navegava para 
a Índia; embora todo o litoral fosse sempre visitado e 
mesmo explorado pelas armadas que se dirigiam para o 
oriente, data apenas do 1505 o principio da colonisaçBo 
portugueza no território da África oriental que hoje se 
chama provinda de Moçambique, e que n'aquella época 
começou com o modesto titulo de capitania de Sofala, por- 



que foi Q'esac anuo que ae ftmdoa a fortaleza de Sofala, 
sendo nomeado primeiro oapitUo da colónia Pêro de 
Anhaya. Em 1509 Duarte de Mello fundou a fortaleza de 
Moçambique, e Lourenço Marques estabeleceu em 1544 
uma feitoria na Baliia a que deu o nome. Começou tam- 
bém n'oBta época a exploraçilo do Zambeze, dando em re- 
ijultado o estabelecimento da feitoria que maia tardo bu 
transformou na villa do QueUmane. As edificasses da villa 
de Sena e de Tete, e a occupaçRo do muitos pontoa do 
litoral foram-se verílicando auccessivamente, custando mui- 
taa o muitas vezes mal feridos combates. Em consequên- 
cia da conquista doa reinos de Monomopatá c Qaiteve, c 
era virtude do doações de vastos territórios, o nosso domí- 
nio conaolidou-se n'e3ta parte da Africa, embora o perdea- 
somos n'outra cum o desmoronar do noaso vasto império 
colonial. 

Em 11) d'abril de 1752 Moçambique foi dealigado do 
governo da índia e constituido em governo iadependento. 
Era o que restava a Portugal dos seus vaatoa dominioa 
«'estas paragens quo chegaram a estender-ao na costa orien- 
tal da Africa até á embocadura do mar Vermelho. Ã poaae 
do Brazil quo fizera para ali convergir todas as attençSes 
fez com quo Moçambique nílu aervisae para mais nada, 
durante muito tempo, aenão para exportar escravos para 
3 grande colónia americana. E tondu acabado este infame 
tratico a província esteve por muito tempo deapresadn, 
aem que de nenlmm modo ae procurassem aproveitar aa 
suas immenaas riquezas naturaes. Ultimamente, pordm, 
tera-ao paia ali voltado mais aa attençBes dos governos, e 
aquelia bella colónia tem morecido oa cuidados da metró- 
pole, como tem excitado a cubica dos eatrangeiroa, cubica 
que prinoipalmente se teia âxado ao nco e Impurt 



EM AFRICA 247 



distrícto de Lourenço Marques. As coisas chegaram mes- 
mo a ponto de termos em 1875 de recorrer á decísSo ar- 
bitral do presidente da republica francesa, porque a In* 
glaterra disputava a Portugal a posse dos territórios de 
Maputo e Tembe, na bahia de Lourenço Marques. A de- 
cisSo foi, como se sabe, a favor dos portugueses, e reco- 
nhecidos e estabelecidos os seus direitos n'aquella região 
importantissima pela sua posíçSo, e destinada n'um futuro, 
nSo talvez muito distante, a ser um empório do commer- 
cio das republicas do interior, uma vez construída a linha 
férrea para o Transwaal. 

Portugal tem tido também muitas vezes de sustentar 
pelas armas os seus direitos contra as invasSes, roubos e 
extorsões das^ tribus do interior. Anda ainda na memoria 
de todos a ínfelicissima guerra da Zambezia, de 1875, para 
castigar a insurreição do capitão mór de Massangono, João 
Vicente da Cruz, o Bonga. Actualmente a provincia está 
pacificada, mas nem por isso são menos para recear as 
complicaçSes que podem originar-se de causas similhantes 
ás que originaram as guerras e perturbações de outras 
épocas, senão nos applicarmos com intelligente cuidado a 
crear ali elementos de força, a desenvolver a producção, 
• a lançar as bases de um solido progresso e de uma acer- 
tada colonisação. 

(Diccionario de Geographia Universal por uma socie- 
dade d'homens de sciencia.) 

' Batuque — E' uma dança africana uniforme o monóto- 
na, mas que constituo para o indigena o maior dos de- 
leites. 

Ao lado d'uma fogueira agitam-se ao som d'uma musica 
infernal, homens e mulheres, n'um charivari espantoso. 



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248 PORTUGUEZEB E INGLEZES 



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j gritando e gesticulando, batendo as palmas, e recitando 
versos. 

Dos grupoQ sahem alternadamente homens e mulheres 
que representando mimica erótica e indecente, acabam por 
dar com o ventre um no outro ! 

(Capdlo, Ivens — De BengueUa ás terras de lacca.) 

KUombo — reunião de cabanas com um individuo a que 
chamam soba, soheta, chefe, e ás veses Rei ! 






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IGLEZES EM AFRICA 




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a\; pM^M - L - nulitra iTifrvãi^iis l'|Hh'.ll{i ?— ""— — '^— —— — 

Limites prováveis das nrolonçõrs oíík'i;u's do governo in- 
Çlez nas reg-iòoji do Matobclos, i>iiohona, etc , deduzidos 
no que consta das notificações [wihliradas ató hoje— (de- 
marcação da fronteira' de hlatebdlrs, Maoh«vna. etc, pelo 
meridiano 31«, desde o rio lirnpfíí)o aíí^ ao Zambeze, se- 
íjaindo dtípois o curso d esto rio at<^ a foz áo Saniati 

Lirajles prováveis das pn^tençõí^s ofíl(;ia<^s do g-overno in- 
glcz nas reg"iôeá próximas do la^^^o Nliassa ílediizidas do 
cnic consta das noUíicacòes nul)licadas aló- hoje. (Zona 
de 50 milhas ao loní?odo lano b\síe «lo la^^o . Nliassa c de 
50 milhas sobre, cada uma das marq:(nis da fio Chire 
flesde o M\,assa aló a aíltieiicia do Iltjn) 

Limites a que a opinião publica in^^loza pretc^ndí^jredtwir o 
domínio portu/^uez na Africa oncnfal (I^rotençoif^s ofíicio- 
sas da imprensa \n^:\o?.^ c dos e<liinres mg-leze? de map- 
pas í^eop^raphicos— Zona de 40 milhas ao longo -dacogta.'} 



2 Territórios portup^uezes 
\ Territórios m^iozes. 
h Territórios dos Maiebcles 
;;<:.'. Territórios dos Makoloios 



1 Terntorioa áillemáes, 
:\ Territórios dATrans- 
vaal. 



(') Territórios quasi desertos <!a ^faclu)na, theaíro das corre 
nas dos Mafebeles contra os n-pijos vassalos <1e Tortu- 
gal. (Es^es re/^nilos nunca [oram tributários doss Mutebc- 
M. 

O Capital 'la província 

cu Capital do aistrirto 

■ Sòde do coniniandíj militar. 

k Uc(;ulos vassalos do Tortu^irai. 

Povoação importante 

N. D.—lnicamentf- são iniiicados os principaes rep;ulos 
avassalados c os comraandos militares o as caí)ifanias mu 
res que interessa conhecer para o estudo da questão 



Limites dos.<lislricl08. 

Caminho d(^ ferro 
-«■-»» Canii!ilw) divíorru em 
projecto 



Es'oaln . o.ooo:oí»f>* 



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índice dos capítulos 



PRIMEIRA PARTE 

llACiEIiIi!VA, A Fflilli% DE COIV^I 

I — Em Pretória 7 

II — Orfi^anisaçâo da expedição portugucza a Conji no 

Machona 17 

III — A caminho d^Africa 27 

IV — A navegação dos rios Búzio e Revue. De Massi- 

Kesse ao Save. 39 

V — Magelina, a filha da rainha de Conji 54 

VI — O Lo-Bengula- rei dos Matebeles 63 

VII — Mensagem aJrLo-Bengula 74 

VIII ^— Era Gubulavaio e de regresso a Conji . . / 86 

IX — Do Save pelo parallelo 19." a Sabágué 98 

X — A paixão de Magelina 107 

XI — Conversão ao Christianismo da rainha de Conji c Ma- 
chona -. , 118 

' SEGDRDA PARTE 

COliOTVISiAÇAO A ITVQI4EZA 

I __. De Pretória a Taiti 127 

11 — Colonisação á ingleza 137 

III — Inglezcs e Matebeles 148 

IV — A perfídia dos inglezes 162 

V — Cercados ! 172 

VI — Passagem aos vencidos 186 

VII — Conclusão : 192 



» 



DocumenCofi onde atinenta a base bistorlci^ 

il*este livro 

Nota n.° 1 — Tratado com o imperador Monomotapá 205 

Nota n.® 2 — Doação do Império de Quiteve (hoje Manica e 

Sofala) á coroa portugucza ^209 



Nota u.* 3 — Dopoimento de Fr. Gaspar de Macedo, mostran- 
do q^ue ha longos annos estamos de posse das minas de 
Manica 212 

Nota n.® á — Carta de Filippe ao vicc-rei da índia, escripta 

em 1631 sobre o Monomotapá 218 

Nota n.° 5 — Noticias redigidas por Ig;nacio Caetano Xavier, 
em 1738, sobre o ouro das margens do Zambeze e do dis- 
tricto de Zumbo 219 

Nota n.° 6 — Riquezas miuerias dos terrenos, que os Inglezes 

nos deixaram, depois do tratado. Sena 1762 222 

Nota n.* 7 — Os inquimbas '. 223 

Nota n.» 8 — O tratado de 28 de maio de 1891 228 

Nota n.<» 9 — Noticia histórica sobre Moçambique 231 









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